Marcelo Salles

É incrível a dificuldade que o ser humano tem de enxergar além do imediato. E a mídia grande aproveita-se desta condição para cada vez mais apertar a venda que lhe cobre os olhos.

A notícia já chega resumida e interpretada. Depois de absorvida, fica difícil até mesmo mudar uma vírgula.

Através das páginas da história oficial ficaremos sabendo que o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello morreu em virtude de um ataque terrorista na sede da ONU em Bagdá, em 19/08/03. E ponto. O imediatismo não reconhece fronteiras. As agências internacionais rapidamente encontraram o veredicto, prontamente traduzido pela mídia grande brasileira: ataque terrorista.

Convenhamos, nada mais abstrato. Por isso mesmo, nada mais difícil de refutar.

Acerca do assassinato de Vieira Mello, locuções introdutórias do tipo “Segundo uma testemunha citada pelo jornal The New York Times” e “Segundo uma fonte do governo dos EUA que pediu para não ser identificada” foram largamente utilizadas pelos jornais e telejornais brasileiros. A confiança cega que se deposita em fontes e testemunhas anônimas não condiz, em absoluto, com a realidade. Não importa a procedência da informação, mas apenas a informação. A mídia grande sabe que o que será fixado nas mentes das pessoas é a mensagem e não o mensageiro. Tanto barulho feito em torno do caso Jayson Blair para nada.

Nossos jornalistas estiveram tão preocupados com a tradução que nem lhes ocorreu investigar os relatórios enviados pelo diplomata brasileiro à ONU. No penúltimo deles, datado de 12/08/03 e que pode ser lido, em inglês, integralmente em http://www.un.org/apps/news/infocusnewsiraq1.asp?NewsID=592&sID=12, Mello afirma: “Por uma questão de princípio, apóio as decisões tomadas livremente pelo povo iraquiano sem que haja nenhuma interferência externa durante o processo que levará à adoção de uma nova constituição”. Talvez estes não sejam os planos dos EUA para o Iraque. Além disso, está em todos os jornais: a ONU avisou ao Conselho de Governo sobre a iminência do ataque, sem que nenhuma providência fosse tomada.

Quando o também diplomata brasileiro e inspetor de armas da ONU, José Maurício Bustani, apontava seus estudos na direção da não existência de armas químicas e biológicas no Iraque, os EUA pressionaram a ONU de tal forma (gostaria de saber como) que Bustani acabou sendo afastado de sua função.

Como se não bastasse, a mídia grande levou dois dias para dizer que, segundo uma emissora de televisão dos Emirados Árabes Unidos (país aliado dos EUA), o atentado fora planejado e executado por um “grupo extremista radical ainda desconhecido”. Algo parecido com a religião: ou você acredita, ou não. Nunca é demais lembrar que no famoso 11/9 nenhum grupo assumiu a autoria. Divulgaram uma fita de vídeo aqui, outra ali, que poderia ser, segundo especialistas, mensagens codificadas que provariam a participação de Osama Bin Laden, além de outras abstrações. Mas nada ficou efetivamente provado e nenhuma organização reivindicou para si o atentado.

Desta forma, a mídia grande abre um precedente extremamente perigoso: cria-se um inimigo abstrato (o terrorismo) e retira-se dele seu principal elemento de identificação (a assunção dos atentados). Em outras palavras, o que está sendo inculcado nas mentes é algo muito mais assustador que o pensamento único. Estão veiculando, todos os dias, uma mensagem única. Esta, pior que o pensamento (que já vem pronto e, por isso, mais facilmente identificado), amolda-se e associa-se discretamente à percepção, ao imaginário do indivíduo, causando danos muito mais profundos que visíveis.

Sérgio Vieira de Mello foi assassinado por um caminhão-bomba. E o real motivo pode estar sendo apagado pelo imediatismo das imagens e das palavras.

(Marcelo Salles é estudante de jornalismo da Universidade Federal Fluminense. Publicado no Correio Caros Amigos)