Regis Moraes

Lembro-me da reação de algumas pessoas quando, faz algum tempo, dizia que o grupo Folhas, da “progressista” família dos Frias, era, na verdade, uma empresa de oportunidades, que apoiava a tortura quando esta era conveniente e fazia a defesa da “democracia”, a seu modo, claro, quando esta se mostrava mais rentável. Um certo ar de descrédito aparecia no rosto de meus interlocutores. Agora, sai uma biografia do sr. Otávio Frias, pai, em que o autor registra um fato que não poderia ocultar – trata, certamente, de apresentá-lo de modo… polido.

O fato é, contudo, bastante duro. O grupo Folhas foi, durante a ditadura, um fornecedor de dinheiro para torturadores. Quando eu dizia isso — com informações que emanavam de varias investigações independentes — as pessoas me olhavam com certo ar de descrédito, como disse. O grupo tinha 3 jornais. A Folha de São Paulo, o mais sem-cara, governista, mas sem gosto. O Noticias Populares – o famoso “espreme, sai sangue”. E a Folha da Tarde. Este último era, na expressão jocosa de alguns jornalistas, o jornal de maior tiragem do país — maior numero de tiras na redação. Contratava os torturadores como funcionários, para contribuir com os serviços de manutenção da ordem. Mantinha seus jagunços pós-modernos. E fazia propaganda violenta do regime e da tortura. Era o Noticias Populares do “crime político”.* *Não era apenas isso, infelizmente. O Doi-Codi, órgão oficial do exercito, necessitava instrumentos “excepcionais” para prender opositores da ditadura sem declarar a prisão, para que pudesse torturá-los e eventualmente assassiná-los sem que sua prisão ficasse estabelecida. Notáveis empresários paulistas fizeram uma caixinha-dois para isso, criando a Operação Bandeirantes (a famigerada Oban), braço clandestino da repressão. Homens, veículos, instalações. A Folha era uma dessas empresas iluministas. Talvez alguns dos que hoje escrevem na “liberal” Folha tenham sido conduzidos à Rua Tutóia, sede de sua principal masmorra, para os eletrochoques. E talvez tenham sido levados para lá em automóveis da Folha. A empresa emprestava os carros (não tinham chapa oficial…) para nos procurar em casa e levar para o massacre. Talvez alguns dos torturadores fossem, eles próprios, funcionários da nobre empresa. Combatentes da liberdade de imprensa.

Nunca vi qualquer dos iluminados democratas de hoje – denunciadores do “totalitarismo petista” ou da “ameaça chavista” mencionar esse triste episódio. E, quando algo se fala a respeito, muitos deles gritam que estamos querendo acabar com a liberdade de imprensa. Instituíram uma forma peculiar de censura. Censuram aquilo que nem chega à palavra, esperam cegar o próprio pensamento livre. Quem é o verdadeiro inimigo da liberdade de opinião?

Muitos dos iluminados foram além. Hoje, acham que é algo neutro colaborar com Veja, a revista do golpe, do assassinato, da mentira a preço fixo. Memória seletiva. Bem, a memória sempre é seletiva. Mas há modos diferentes de selecionar. Eu faço a minha seleção. Custou-me sempre muito caro. Mas, tive alguma sorte, escapei do pior. Para outros, custou mais ainda. Não escaparam. Alguns morreram, outros sobreviveram, mas, como diz meu amigo Flavio Koutzii, com pedaços de morte no coração.

Alguns, felizmente, escaparam. Infelizmente, porém, hoje, simbolicamente, pelo menos, beijam a mão dos torturadores e de seus patrões.

(Reginaldo Moraes é cientista político, professor da Unicamp e colaborador do NPC)