zaccone

Orlando Zacconne é entrevistado por Tatiana Lima no dia de lançamento do seu livro

[Por Tatiana Lima] Nesta entrevista, o delegado de polícia civil Orlando Zaccone nos apresenta o seu livro Indignos de Vida, fruto da sua tese de doutorado em Ciência Política. No estudo, ele investiga como funciona o sistema jurídico da letalidade nos autos de resistência arquivados pelo Ministério Público, mostrando que o extermínio praticado pelo Estado brasileiro vai muito além das ações policiais. Ele fala da violência do sistema jurídico como um todo, voltado principalmente para uma parcela da população brasileira. “Se alguém morre por uma ação policial e tem uma folha de antecedentes criminais, principalmente se for ligado ao tráfico, e se esse fato ocorreu dentro da favela, isso é suficiente pra dar legitimidade para essa ação violenta da polícia”, afirma. Leia a entrevista:

No livro você diz que a Polícia mata, mas não mata sozinha. Por quê?

Temos que entender que existe uma violência do Estado que não ocorre no desvio de função dos seus agentes, mas sim na própria função que esses agentes exercem, porque essa violência vai ser contemplada dentro do Direito, e não fora do Direito. Então hoje, no Brasil, temos sim a violência de alguns agentes policiais que é feita à margem da lei. É o caso das chacinas, por exemplos, quando essa violência não é contemplada em nenhuma forma jurídica. Mas o que eu estudei, que foram os autos de resistência, aborda uma violência que é exercida por agentes policiais e é homologada por setores jurídicos que decidem que essa violência está conforme a lei. É a legítima defesa, por exemplo. Foram analisados 308 autos de resistência com pedido de arquivamento pelo Ministério Público do Rio de Janeiro. É importante salientar que, quando há um auto de resistência arquivado, isso significa que existe uma decisão do Estado dizendo que aquela morte é uma morte dentro da lei. Então, essa violência do direito, essa máquina de operar a violência, não fora do Direito, mas dentro do Direito, é o meu foco. Por isso, eu digo que a polícia mata, mas não mata sozinha.

Você foca mais nos autos de resistência que ocorreram em 2003 e 2007. Por que esse anos foram selecionados?

Porque eram os anos que poderiam ter uma quantidade maior de casos. O auto de resistência demora um pouco para ser arquivado. Leva de três a quatro anos. Além disso, foram os anos em que ocorreram os picos de ocorrência de autos de resistência, coincidentemente no primeiro ano de governo da Rosinha Garotinho e no primeiro ano do governo Cabral.

No livro você destaca que esses autos de resistência não acontecem com qualquer pessoa. As vítimas são pessoas sem ficha limpa. O que quer dizer “ficha limpa”?

Eu identifiquei isso analisando a lógica da decisão de legitimidade dessas mortes praticadas em ação policial. Os promotores de justiça identificam que a legitimidade se dá em dois fatores principais: primeiro, a condição do morto. Se o morto for identificado como traficante pela folha de antecedentes criminais ou de um depoimento de familiar, isso é repetido quase como um padrão nos pedidos de arquivamento. Também o local onde essas mortes acontecem faz os promotores pedirem o arquivamento. Por exemplo, se o fato ocorreu em uma área que eles chamam às vezes de favela e em outras de comunidade carente, onde constantemente tem troca de tiros entre a polícia e “marginais”… Ou seja, se alguém morre por uma ação policial e tem uma folha de antecedentes criminais, principalmente se for ligado ao tráfico, e se esse fato ocorreu dentro da favela, isso é suficiente pra dar legitimidade para essa ação violenta da polícia. Então no Brasil hoje o que está em jogo não é a violência policial no sentido de como a polícia age, mas em relação a quem essa violência se dirige. Aí a gente fica discutindo se a vítima era pedreiro ou traficante, era dançarino ou traficante… Então fica um debate que não é sobre o modo de operar da violência dos agentes policiais, mas sim em relação a quem essa violência sendo direcionada.

No seu livro você faz uma crítica sobre a questão da redução dos homicídios a partir da instalação das UPPS. Hoje, no Rio de Janeiro, muitos militantes, principalmente do movimento negro, denunciam a ocorrência de um genocídio, um extermínio da população jovem e negra. Então, por que você faz essa crítica sobre as estatísticas de redução da violência no Rio de Janeiro?

Sim, eu trabalho com o conceito de massacre, um conceito criminológico do [Raul] Zafarroni, porque o conceito de genocídio infelizmente foi construído no ambiente político, em uma convenção em Genebra, na qual os países retiraram do conceito algumas situações, por exemplo, execução a opositores políticos. Isso não é considerado mais genocídio, porque nenhum Estado vai querer se comprometer com isso. Então, como o genocídio tem essa primazia política, eu trabalho com a ideia de massacre, pois do ponto de vista criminológico, ele é mais cientifico para ser ter um olhar sobre essa ação sistematizada de execução de pessoas jovens e negras que, segundo as estatísticas, são as mais vitimadas na cidade do Rio de Janeiro, dentro dessa lógica da legitimidade da morte. Só que eu reparei na pesquisa do professor Michel Misse da UFRJ, onde ele traz os números absolutos dos autos de resistência no estado do Rio de Janeiro. É interessante notar que, até os anos 2000, nós não tínhamos passado de mais de 400 a 500 autos de resistência. É a partir de 2000 que a gente começa a ter o grande boom, chegando a 900 casos e até o ápice, em 2007, de 1330 autos, para depois ter uma pequena queda que muitos atribuem à instalação das UNIDADES DE POLÍCIA PACIFICADORA. Eu já tenho uma tese de que, ao contrário, acho que a partir de 2008, nós voltamos para os “números normais”, e claro, normais entre aspas, porque todas as agências policiais dos EUA inteiro matam 400 pessoas. E nós estamos falando só do Estado do Rio de Janeiro, então, não é normal um número desses de casos. Mas é histórico o que aconteceu entre 200 e 2007, principalmente em 2007, pois foi uma ação preparatória para a entrada das UPPs. Essa é a hipótese que eu tento demostrar com números estatísticos que está muito mais próximo da realidade. Até porque o projeto de instalação das UPPS foi muito pesquisado em cima do que aconteceu no projeto Colômbia e todos nós sabemos que nesse projeto, antes da entrada do teleférico, da chamada urbanização dos guetos de Bogotá, saíram caminhões com corpos de pessoas executadas em operações policiais. Então, acho que o que tivemos não foi uma redução da letalidade, mas sim um aumento da letalidade durante um período para viabilizar as entradas das UPPS.

E por que você escolheu fazer essa homenagem para o Vito no lançamento do seu livro aqui no Rio de Janeiro?

O Vito tinha duas qualidades que são qualidades excepcionais quando alguém se diz militante político na luta por uma sociedade mais justa: alegria e coragem. Então eu acho que é isso que estamos precisando (emociona-se).