Por Sérgio Domingues*

“Professores já utilizam ferramenta para melhor explicar episódios históricos e as mudanças na linguagem do brasileiro”, diz matéria de Eduardo Vanini publicada em 19/08, em O Globo. O texto refere-se à disponibilização pelo próprio jornal de seu acervo completo.

Por enquanto, a consulta pode ser feita gratuitamente. Segundo o periódico, o internauta poderá:

…navegar pelas edições do jornal desde sua fundação. E consultar tanto as páginas quanto as matérias ou artigos, que foram digitalizados um a um. No total, são mais de 11 milhões de documentos, entre páginas e artigos.

Muitos poderiam achar que a ideia pode se virar contra o jornalão. Afinal, ficaria facilitado o acesso às posições políticas conservadoras que o diário carioca defendeu em vários momentos decisivos da história do País.

Um exemplo clássico é a postura que o Globo adotou no golpe militar de 31 de março de 1964/1º de abril. Em 02 de abril, o jornal publicou o editorial “Ressurge a Democracia!”. Se o título já não fosse explícito o suficiente, alguns trechos confirmam o apoio ao ato ditatorial:

Vive a nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial à democracia, a lei, a ordem. (…) Mais uma vez o povo brasileiro foi socorrido pela Providência Divina, que lhe permitiu superar a grave crise, sem maiores sofrimentos e luto. Sejamos dignos de tão grande favor.

Logo em seguida, em 9 de abril de 1964, a ditadura baixava o Ato Institucional no 1. A medida estabelecia eleições indiretas para Presidente da República, nomeando o general Castelo Branco por um colégio eleitoral. Também foram cassados mandatos parlamentares e direitos políticos.

Na manhã seguinte, a manchete do jornal de Roberto Marinho dizia: “Cassados os mandatos de 40 parlamentares e suspensos direitos políticos de 58 pessoas”. Apesar disso, um trecho do editorial afirmava:

Temos fé em que sob a direção do General Castelo Branco, a Nação enfrentará, unida, as dificuldades que a afligem e que afetam especialmente as massas trabalhadoras, para assim retomar o seu lugar no mundo democrático.

Em 27 de outubro de 1962, foi editado o Ato Institucional no 2, que extinguiu os partidos políticos e estabeleceu um sistema bipartidário. De um lado a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), que representava o regime, e de outro o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), em que uma oposição controlada podia se organizar.

O decreto também permitia ao presidente declarar Estado de Sítio, sem a prévia aprovação do Congresso. Entre outras medidas, funcionários públicos perdiam seus direitos e poderiam ser demitidos por ordem presidencial.

Em relação à medida, o editorial de O Globo publicado no dia seguinte dizia: “…o Ato Institucional no 2 contém em seus artigos preceitos que realmente atendem aos interesses do País e da administração pública…”

Estes são somente alguns exemplos do comprometimento do jornal da família Marinho com o nascimento de um dos períodos mais tenebrosos de nossa história.

Como estes houve muito outros que poderiam manchar a reputação do diário. Mas certamente, seus proprietários contam com poder de monopólio que construíram durante décadas. Procuram tornar os episódios mais vergonhosos menos visíveis em meio à torrente de “11 milhões de documentos” disponíveis. Também se beneficiam da amnésia política que ajudaram a espalhar e contam com a cumplicidade de autoridades e lideranças que até anteontem os acusavam de ser inimigos da democracia.

Cabe a nós, da imprensa alternativa de esquerda e militantes sociais em geral, atrapalhar o máximo possível esses planos.

 *Sérgio Domingues é sociólogo e autor do blog Pílulas Diárias.