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[Por Manuella Soares-mar./2015] Na ocasião do lançamento de seu livro Marx Selvagem, na Livraria Antonio Gramsci, o sociólogo e professor de relações internacionais da Fundação Santo André, Jean Tible, conversou com a redação do Boletim NPC, e nessa entrevista fala sobre sua tentativa de aproximar as lutas de povos originários e de seus protagonistas com a teoria marxista e a superação do modelo capitalista de organização social. 

O lançamento aconteceu no último dia 19 de março e contou com a presença da professora do Instituto de Matemática da UFRJ, Tatiana Roque; da antropóloga Alana Moraes, do Museu Nacional; e dos pesquisadores Josué Medeiros, do IESP/Uerj; e Rodrigo Nunes, da PUC-Rio, que debateram com o autor e os presentes.  

BoletimNPC: Quem é esse Marx Selvagem?

Jean Tible: Eu venho de uma formação marxista, mas quando tive contato com a antropologia, com as lutas indígenas, me marcaram as afinidades e também o distanciamento entre esses dois universos. Então,  minha proposta foi tentar conectar, ver como funcionaria esse diálogo entre os marxistas, os comunistas, ou a esquerda, como queiramos denominar, com as lutas dos povos originários. Quando os intelectuais mostravam algum interesse pelo estudo de uma possível conexão,  era sempre com uma proposta de tentar encaixar essas lutas, nos termos de uma proposta já pré-estabelecida pelos próprios marxistas.

 

Por outro lado, a antropologia também, ao meu ver, não leva muito em conta Marx. Tentei aproximar esses dois mundos. E os próprios índios, em suas lutas, de alguma forma, também estão distantes de Marx no sentido teórico e político, embora tenhamos o exemplo do Davi Kopenawa, líder Yanomami e escritor, que, embora sem ler o marxismo, acaba pensando em termos “marxisisantes”.

 

BoletimNPC: Você e o Kopenaua estiveram próximos, trocaram ideias diretamente, em algum momento da sua produção?

Jean: Não muito.  Já o entrevistei, mas foi até depois da produção desse trabalho. Mas como a aproximação desses dois universos já é algo pesado, difícil, eu procurei usar como diálogo a mediação da própria antropologia e da etnologia, onde temos alguns pesquisadores como o Eduardo Viveiros de Castro,  Bruce Albert, e também o Davi Kopenaua.

 

Davi gravou o seu pensamento e visão do mundo dos ‘brancos’ e o parceiro dele, o antropólogo frânces radicado no Brasil Bruce Albert, que fala yanomami, transcreveu e  escreveu em francês o livro “A Queda do céu”.

 

Seria o que a gente chama de um antropologia reversa, como se o índio estivesse fazendo uma antropologia do ‘nosso mundo’. E nessa antropologia indígena aparece, então, a questão da mercadoria, onde acho que se encontra algumas tinturas do pensamento marxista.

 

BoletimNPC:  Eles fazem a crítica à produção de mercadorias com valor de troca?

Jean: Kopenaua vai chamar os brancos de ‘o povo da mercadoria’, trazendo toda uma elaboração que lembra alguns trechos e algumas ideias de Marx. Sem claro ter o conhecimento ou relação com esse pensamento marxista.

 

BoletimNPC:Quando você fala em Marx  Selvagem, está falando do filósofo do capital, que em algum momento, se aproxima desse comunismo primitivo? Essa leitura estaria fora do estudo e da pesquisa de marxistas considerados ortodoxos?

Jean: É, eu fiquei com a impressão de que Marx era mais aberto em suas análises do que nossos contemporâneos marxistas. Porque, de alguma forma, tentamos mostrar o que Marx falou sobre o que eu chamo de “outros”. Tento fazer uma leitura de tudo o que Marx escreveu sobre outros povos, lutas, que não ocoreram nos países ocidentais, dentro da nossa cultura antropocêntrica. Ver como ele tinha, de um lado, curiosidade por essas outras experiências de luta e, de outro, a capacidade de perceber o que seria a transformação por essas outras formas de luta e resistência ao modelo capitalista.

 

BoletimNPC: Você acha que esse pensamento está se refletindo hoje, nas lutas sociais em curso?

Jean: O pensamento desse Marx é um pensamento-luta, não é um pensamento afastado da realidade, daí o Marx sociólogo, antropólogo, nesse sentido. De ele não estar fora do mundo, de não ser mais quase uma caricatura de filósofo. Ele está, na verdade, o tempo todo se transformando no contato com a realidade dos acontecimentos. O proletariado como sujeito revolucionário veio da observação de estar nessas lutas. Ele viu o proletariado emergindo como um ator político e não o pensou, sozinho, na sua mesa de trabalho.

 

BoletimNPC:E no caso das lutais dos povos originários? Seriam revolucionárias, se enquadrariam nessa categoria, já que esses povos estariam, de alguma forma, já fora do sistema?

Jean: Acho que a leitura de Marx permite algumas aberturas. No caso que cito da Índia, ele tem que essa perspectiva primeira de que as desgraças capitalistas seriam compensadas, porque em ultima instâncias seriam benéficas para esses povos, mas depois ele vai dando mais força para a resistência anticolonial indiana e, sobretudo, no caso da Rússia, à colônia rural, e depois quando lê relatos sobre a vida dos iroqueses, índios da América do Norte, da região de Nova Iorque. A partir daí eu percebo uma mudança, tanto que ele vai alterar até alguns trechos do Capital.

Sai  um pouco desse determinismo histórico, de que todo mundo vai seguir o modelo da Inglaterra, que seria o mais avançado e ditaria o ritmo dos outros países. De certa forma, ele quebra com o pensamento linear e mostra uma abertura para tentar pensar o potencial revolucionário de outras lutas.

Esse pensamento aparece muito no final da vida dele. Mas uma coisa importante, no meu ponto de vista, é que mesmo que Marx não tivesse apresentado essa abertura, digamos, para outras experiências revolucionárias, nada nos impede de produzi-la, mas, entre aspas, artificialmente também. De qualquer forma, percebo o pensamento dele também incompleto, porque é aberto às lutas vindouras, digamos.

Há um certo incômodo com o conservadorismo do pensamento dos marxistas que sempre afirmam algumas verdades, quando o mundo que está aí fora nos diz outras coisas. Tanto na ponta do capitalismo como também em lutas que seriam vistas por alguns como primitivas, mas que parecem mostrar outra coisa, que, de alguma, forma estariam até na ponta do processo.

BoletimNPC: Como você traria esse debate para os dias de hoje, especialmente em relação a lutas de resistência promovidas por povos na América Latina,  como a dos índios na defesa de suas terras e modos de vida, no Brasil?

Jean: Marx faz sentido como pensamento de luta. Há essa questão da lutas dos povos originários na América, mas há também a possibilidade de uma visão reversa do Brasil, de como seria um Brasil indígena. Também isso diz respeito a todos os brasileiros, a todos os latinos americanos. É um pouco inverter essa nossa lógica de resistência e pensar essa resistência ao capital  a partir das lutas e das possibilidades de organização apresentada por esses povos.

Vejo como interessante, por exemplo, uma nova geração de movimentos indígenas, com jovens ocupando espaços como as universidades. O que vemos hoje é um aumento das populações, não só pela reprodução, mas também pelo auto-reconhecimento. Isso os permite um protagonismo político mais forte, embora com muitas dificuldades, como o enfrentamento com as empresas, como em Belo Monte, à políticas de remoção, como foi aqui no Rio, na Aldeia Maracanã, e o empobrecimento e a favelização desses povos em sua inserção nas cidades.