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Foto de Beatriz Arruda/Seesp

[Por Rosângela Ribeiro Gil – São Paulo/ BoletimNPC]

Recentemente, tive a oportunidade de entrevistar um ativista sindical ítalo-brasileiro de 74 anos de idade, em plena militância e vontade de que as coisas mudem e melhorem para a classe operária, por quem diz nutrir um “profundo amor”. José Luiz Del Roio tem uma ficha ativista e profissional extensa, entre elas radialista por quase 20 anos na Itália. Nascido em São Paulo, ele está envolvido nas lutas sociais desde os 17 anos de idade. Em 19 de setembro último, foi relançado o seu livro “1º de Maio: sua origem, seu significado, suas lutas”, cuja primeira impressão foi na comemoração dos 100 anos da data, em 1986.

Nessa conversa, que reproduzo alguns trechos a seguir, Del Roio me fez “acordar”. Sim, acordar. Ele foi categórico ao dizer que o nosso sistema capitalista foi gerado na placenta do regime escravocrata. Ou seja, está no “sangue” da nossa economia e de boa parte da nossa sociedade o desrespeito, a humilhação, o preconceito. Um racismo “expandido”, de raça, de classe, de credo político; ou seja, tudo o que a “casa grande” considera diferente e não o seu espelho é rejeitado, é sacrificado, é assassinado, é preso, é colocado na marginalidade.

Incansável no otimismo, o nosso ativista ainda consegue enxergar uma luz no final do túnel e acredita que nesse momento totalmente adverso aos direitos trabalhistas, sociais e humanos no País, sindicatos de trabalhadores e movimentos sociais entenderão a necessidade de unir forças e lutas.

Del Roio, ao saber que eu fazia parte da “prole” adotada de Vito Giannotti, parou, jogou longe o olhar e disse meio cerimonioso: “Ele era um apóstolo da luta operária. Ele era o próprio personagem do Marcello Mastroianni [professor Sinigaglia] naquele filme de [Mario] Monicelli, ‘Os companheiros’.” As emoções nos lembram de que viver é preciso, e lutar também.

O que acontece hoje no Brasil está dentro de um contexto mundial?
Del Roio –
Faz parte do processo de desmonte do Estado. Essa é a questão. É necessário enfraquecer os Estados para reduzir os direitos sociais e para libertar totalmente qualquer tipo de amarra ao capital financeiro. Mesmo na Europa, mesmo que não saia explicitamente na imprensa, foram feitos muitos golpes. Sistematicamente foi se transformando leis eleitorais, criando ou mudando leis para enfraquecer o Estado. Pela primeira vez na Itália se tem um governo, cujo primeiro-ministro nunca foi eleito. Eu considero isso um golpe.

A quebra de direitos dos trabalhadores brasileiros sempre vem acompanhada de um discurso comparativo a outros países.
Del Roio –
O que está se propondo ao brasileiro é que ele trabalhe até o último dia, e no dia seguinte, por favor, morra. Comparar países e condições de vida e de trabalho diferentes é um absurdo. Ou é tudo global e justo, ou não é.

O capital tira toda a dimensão humana do trabalho.
Del Roio –
Essa é uma velha história, já muito discutida no século XIX. O capital tende a isso porque ele precisa do lucro, que se consegue na base da exploração da mais-valia. Claro que ao longo do tempo e com as lutas foi se construindo uma contraposição, criando-se certo equilíbrio; mas hoje estamos num momento curioso onde o capital produtivo e industrial, pelo menos no mundo ocidental, está com uma taxa decrescente de lucro. É o grande desespero das economias dos Estados Unidos e da Europa. O único que tem capital crescente é o financeiro, o invisível. Estamos nessa contradição que confunde um pouco a sua pergunta, atualmente. Nessa última fase confundiu tudo. Vivemos um momento de desindustrialização no Ocidente e de taxas de lucros decrescentes.

O que isso aponta para o futuro?
Del Roio –
Um quadro bastante obscuro, onde não se conseguiu teorizar a ruptura. O capital financeiro sendo invisível e sendo algo 60 vezes mais do que toda a produção mundial, é um esquema fictício tal que ele tende a explodir por si mesmo. Não é que se vai ter o paraíso depois. Será um período de dor, barbárie e necessidade de agregação das pessoas e reconstrução de estados nacionais o mais democráticos e amplos possíveis; isso vale sobretudo para os grandes países, com grande expressão demográfica e extensão geográfica. Isso conta. Não vamos pedir a um país como Andorra, com quatro mil habitantes, que possa resolver o problema do Planeta. Nessa linha estão poucos países, como a China, a Índia, Estados Unidos, Canadá, Rússia e o próprio Brasil.

Como podemos entender melhor, fora a lógica capitalista, o que acontece hoje no Brasil, lembrando que tivemos mais de 300 anos de escravidão e 127 anos de vida republicana. Isso fica impune?
Del Roio –
Isso é impressionante na história de uma Nação. Em grande parte da história do País, as relações de trabalho são baseadas na escravidão, que não teve ruptura, apesar das muitas lutas contra. Na verdade, a habilidade da classe dominante violenta acabou fazendo essa abolição não por pressões internas, mas por pressão internacional. E logo depois tentou minimizar ou esquecer essa história, virou até um pouco folclórico, dizendo que a “nossa” escravidão era boa ou não era tão ruim.

O regime escravocrata está no DNA do capitalismo brasileiro?
Del Roio –
Lógico que está! O capital que se libertou do tráfego negreiro é o mesmo que imediatamente constituíram as lavouras do Centro-Sul do País, as grandes fazendas de café. E os grandes fazendeiros quem são? São aqueles que depois, na segunda geração, vem para São Paulo e Rio de Janeiro para criar as primeiras indústrias. O capital sai do tráfico, vai para o café e vem para a construção do sistema industrial. Não existe contradição, está tudo interligado. Lógico que a ideia é sempre escravagista e o nosso operário sempre foi tratado como escravo.

É um passado que ainda está presente?
Del Roio –
É um passado que nunca passou. Chegamos a um absurdo que até poucos anos atrás, em documentos, livros, jornais, se falava em minorias brasileiras. E quem eram elas? Os índios, os negros, as mulheres – todos sempre foram as maiorias. Cinquenta e três por cento da população brasileira, indica o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], é negra. Somos o segundo país negro do Planeta, somos ultrapassados apenas pela Nigéria. Mas se você falar que o Brasil é um país negro, ninguém acredita, nem o negro. Porque o País consegue ou conseguia esconder a maioria. Temos uma imagem falsa de nós mesmos.

A escravidão, então, está presente hoje no Brasil quando se vê um empresariado falando que a jornada precisa aumentar e que existem muitos direitos. Está tudo relacionado?
Del Roio –
Está tudo muito relacionado. Empresários de outros países devem pensar a mesma coisa, mas jamais falariam uma coisa dessas. Pelo menos o pudor, se não é a inteligência política, não pode dizer essas coisas. Aqui se diz qualquer coisa, até que torturador pode fazer apologia da repressão da ditadura militar em cima de caminhão de som e ser aplaudido, aqui pode se dizer que o escravismo não foi ruim.

Isso é democracia?
Del Roio –
Não, isso não é democracia. Quando se fala que o estupro é uma coisa normal se está ofendendo a humanidade. Não temos o direito de usar a democracia para ofender ou restringir as necessidades das pessoas. Não é democracia quando se tem uma das maiores concentrações de renda do mundo e ainda se tem uma massa da população abaixo da necessidade mínima de um ser humano.

Os discursos patronais de 2016 são os mesmos, por exemplo, de 1886?
Del Roio –
São idênticos. Àquela época, eles diziam não dá para cortar o horário de trabalho porque senão não teremos mais lucro, e aí teremos de fechar a fábrica.

Como o senhor vê o cenário brasileiro para o trabalhador em tempos de governo Temer?
Del Roio –
Vejo de grandes conflitos. Tivemos um período em que o trabalhador brasileiro conseguiu quase pleno emprego, adquiriu sua casa própria e colocou seu filho na faculdade. Tivemos a valorização do salário mínimo, tudo isso criou esperança e perspectivas. Agora vemos de novo a face horrenda da exploração, quando querem cortar tudo. A pior coisa que pode acontecer é acabar a esperança. Não existe pecado maior que a perda da esperança. A essência dos sindicatos é reivindicar. Tenho certeza que vão começar ações nas fábricas, nos bancos, nas escolas. O movimento sindical tem conseguido colocar areia nessa engrenagem terrível e vai se ligar à luta dos movimentos sociais – de estudantes, jovens, dos sem terra, das mulheres. Tudo isso vai se juntar e impedir que a classe dominante oligárquica e escravocrata consiga avançar e destruir o que se conquistou.

O senhor relançou o livro sobre o 1º de Maio em setembro último.
Del Roio –
É um livro de convicções. Não é um livro água com açúcar. É um livro de luta, de combate e de profundo amor ao proletariado.

Seu recado aos trabalhadores brasileiros.
Del Roio –
Esperança, esperança, esperança. Organização, organização, organização.