Vito Giannotti, durante curso anual do NPC, em 2006Estamos na semana do Dia Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março. E para falar sobre a data entrevistamos um homem maravilhoso (será que ele é machista?), um revolucionário que tem no sangue o mundo sem explorados e exploradores. Com vocês, Vito Giannotti, ex-ferramenteiro de São Paulo, autor de vários livros sobre comunicação sindical e linguagem, italiano que adotou o Brasil de corpo e alma. Por Rosângela Ribeiro Gil, março de 2006

Debate Sindical – O que significa, para você, o Dia Internacional da Mulher?

Vito Giannotti – É a ocasião de levantar o tema da situação da mulher. A maioria das mulheres vive, ainda, numa situação de dominação e opressão específica. Claro que a principal contradição, na nossa sociedade, é a situação de exploração devido à estrutura capitalista na qual vivemos e mais ainda, hoje, na situação de domínio neoliberal. Claro que este fato determina toda uma estrutura absolutamente injusta de exploração, opressão, dominação e discriminação de qualquer homem e mulher que não seja da classe dominante.

Mas, ao lado disso, temos uma situação histórica concreta que faz com que as mulheres da classe trabalhadora, do povo, sejam duplamente oprimidas, exploradas, controladas, esmagadas e castradas. São elas as primeiras a pagar a conta da situação de exploração da classe. Elas que carregam um peso de séculos e milênios de humilhação, super-exploração e opressão que lhe são específicas. É a mulher que aparece por aí de olho roxo, como vimos nas páginas dos jornais cariocas no dia 1º de março. Uma mulher apanhou do marido porque ele se irritou com o trânsito. Quantos casos como esses temos notícias no nosso dia-a-dia? É a mulher que, em 99% dos casos, acorda de noite para cuidar do filho doente. É ela quem o leva para o posto de saúde e, conseqüentemente, perde o emprego. É ela que vai às reuniões na escola do filho.

O dia da Mulher é a ocasião de refletir sobre tudo isso. Ajuda a colocar um problema que durante o ano todo, na maioria dos casos, é relegado ao décimo lugar das prioridades da luta social. O 8 de Março propicia esta discussão. Agora, se não se tomar cuidado, o 8 de Março vira mais um dia com o objetivo de aquecer as vendas do comércio como o dia das mães, dia dos namorados etc.

Já encontramos sindicatos, movimentos sociais e ONGs (Organização Não-Governamentais) que, pensando em fazer algo para o Dia da Mulher, resolve distribuir rosas. Na minha opinião, isso é o mesmo que dar uma panela de pressão ou um liqüidificador para a mãe, no Dia das Mães. O 8 de março é para reafirmar a luta da mulher por sua total libertação de todos os jugos: do patrão, do pai, do marido das proibições culturais e religiosas.

Debate Sindical – A luta da mulher é a mesma dos homens, ou tem aspectos específicos?

Giannotti – É uma luta geral e específica. Sabemos que a principal luta de homens e mulheres é para construir uma sociedade justa, livre e solidária. Isto é, construir uma sociedade socialista. Essa é a primeira luta, a principal. Mas a sua situação específica das mulheres não vai ser resolvida automaticamente, como numa mágica, quando chegar à sonhada sociedade socialista. Infelizmente, vimos, em muitos países que fizeram uma experiência socialista, que a situação da mulher não mudou automaticamente.
 

Na URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), mulher continuava a levar chifres do seu ilustre companheiro socialista, a levar porrada do pai, dos irmãos e do querido companheiro de cama. É só reler o livro clássico, A Nova Mulher e a Moral Sexual, de Alexandra Kollontai, de 1919, para ver como a situação da mulher não se resolveu automaticamente com a Revolução Russa.

A mulher só vai se libertar se tiver uma luta específica de anos e de séculos para superar a herança infernal de humilhação e desvalorização a qual ela foi submetida. A triste herança da nossa cultura ocidental, influenciada pela moral judaico-cristã-muçulmana, é um fardo que vai exigir séculos e séculos para ser superada. A visão que tornou a mulher objeto de uso do macho, para seu deleite e aproveitamento, está enraizada em nossa sociedade e só será varrida do mapa, com séculos de luta explícita, positiva, afirmativa das mulheres e dos homens que se disponham a levar esta luta conjuntamente. Mas, não é só nossa herança judaico-cristã-muçulmana que determinou a atual situação da mulher. O que era a mulher na Grécia antiga, confinada ao gineceu? O que significava para ela a tal democracia grega? Elas votavam, discutiam, apitavam alguma coisa?

E em outras sociedades não ocidentais, não é que a mulher tenha se dado muito melhor. Por isso repito, serão precisos séculos e milênios para as mulheres superarem a situação de inferiorização, em todos os sentidos, a qual foi submetida. Por isso, cada 8 de Março é mais um tijolo na construção de uma nova mulher: livre, respeitada e participante da construção de uma nova sociedade, a sociedade socialista, onde ela terá mais condições de consolidar suas conquistas. É por isso que lutamos.

Debate Sindical – A luta da mulher é uma só, independentemente de sua classe?

Giannotti – Não. A sociedade é dividida em classes. Esta é a primeira realidade, profundamente cruel. Morar numa favela e viver com R$ 200,00 por mês é completamente diferente de quem mora num belo condomínio fechado, com piscinas, saunas e arames farpados e eletrificados em volta, e com uma renda familiar de uns 15 ou
20 mil reais. A madame ou a
intelectual que vive nesta situação está a anos luz de distância da mãe solteira, ou da mãe de dois ou três filhos que foi “largada” pelo marido que a trocou por outra. Acordar às duas da madrugada para ir mendigar um miserável e indecente atendimento num posto do INSS para o filho doente coloca esta mãe em situação absolutamente diferente da de 15 mil mensais que tem uma empregada-escrava, que dorme no trabalho que vai cuidar da sua casa enquanto ela vai tranqüilamente levar seu filhinho no seu convênio de luxo onde será atendida como uma princesa.

Mas, há uma coisa em comum entre a patroa, seja ela artista global, escritora, engenheira ou juíza, e a sua empregada doméstica: as duas estão sujeitas a levar um soco no olho, quando o marido-machão se enfezar. Igualzinho. Doutora da USP ou meninota de baile funk terão que usar óculos para esconder o olho roxo.

Esta é a luta comum. As duas são desvalorizadas, humilhadas de mil formas por seus lindos companheiros. As duas terão que fazer regime (claro que em condições totalmente diferentes) para não serem trocadas por outras mais magras por seus machos.  As duas têm que assistir centenas de comerciais de mulheres esbeltas, magérrimas, esqueléticas mostrando para elas o ideal valorizado no mercado.

Há uma grande luta a ser feita por todas as mulheres. Mas, eu acho que, na situação de profundíssima injustiça da nossa sociedade brasileira, não dá para as duas estarem na mesma barricada. Pelo menos na mesma hora. São mundos absolutamente distantes, contrários e inimigos um do outro. E o mundo da mulher do povo explorado, tanto ela quanto seus companheiros homens por esta sociedade capitalista-neoliberal, só existe porque existe o outro. É criado pelo outro.

Claro que a responsabilidade não é individual de cada membro da classe exploradora. Mas é responsabilidade de cada um, macho ou fêmea, que pertence àquela classe e não lute para acabar com este verdadeiro apartheid social.

Debate Sindical – Você fez uma pesquisa detalhada sobre o Dia Internacional da Mulher? Como surgiu a data?

Giannotti – O Dia da Mulher nasceu no EUA, em 1908, por iniciativa da Federação Autônoma das Mulheres da região de Chicago. Foi no dia 4 de maio daquele ano. Essas mulheres, na sua quase totalidade pertencentes à classe média, já lutavam por igualdade com os homens e sua primeira reivindicação era o direito de voto. No ano seguinte, as mulheres do Partido Socialista Americano convocaram o Dia da Mulher para o último domingo de fevereiro. Por conta delas e com a força do Partido por trás declararam esta comemoração como o primeiro dia da Mulher. Na verdade não seria. Mas ficou sendo. Neste dia participaram muitas operárias do Partido ou simpatizantes. Sobretudo estiveram presentes, neste dia, mais de duas mil operárias têxteis que tinham acabado de fazer uma greve vitoriosa apoiada pelo Partido.

Em 1910, as mulheres socialistas marcaram de novo o seu dia para o fim de fevereiro. Em agosto deste ano, em Copenhague, Dinamarca, aconteceu um Congresso da Internacional Socialista. Após o congresso as mulheres realizaram a sua 2ª Conferência Internacional. Nesta, decidiram que as mulheres socialistas, cada uma em seu país, festejariam o Dia da Mulher, num dia destinado só a esta comemoração. Não se definiu data nenhuma. Cada país escolhia sua data. Em 1914, as mulheres do Partido Socialdemocrata Alemão comemoraram o seu dia em 8 de março, sem nenhuma razão especial. Em 1917, em São Petersburgo, Rússia, em 27 de fevereiro, no calendário russo, mulheres tecelãs e costureiras iniciaram uma greve que acabou sendo o estopim do começo da Revolução Russa. No ocidente o 27 de fevereiro era o dia 8 de março. Em 1918, as revolucionárias russas comemoraram o sue dia em 8 de março, para lembrar a greve do ano anterior. Finalmente em 1919, Alexandra Kollontai, única mulher do Comitê Central do Partido Comunista Russo, declarou o 8 de março como data mundial para o Dia da Mulher. A nova Internacional, a Internacional Comunista, adotou esta data e a indicou às mulheres comunistas do mundo todo.

Durante a década de 30 e 40 a data foi esquecida. Nos anos 1950, o Partido Comunista Francês começou a montar a historinha de uma greve nos EUA, em 1857, com 129 mulheres queimadas etc. etc. Fez isso para tirar a marca muito forte de Dia das Mulheres Comunista. A historinha pegou e, a partir de 1966, começou a ser espalhada pelo mundo. Mas a verdadeira história é a que contei acima. Há dezenas de fontes que provam isso.

Debate Sindical – Toda mulher já ouviu em algum momento de sua vida, como piada ou até mesmo a sério, que “lugar de mulher é na cozinha”, é isso mesmo?

Giannotti – Esta é uma das tantas frases idiotas criadas pelo machismo imperante. Há milhares de outras, no mesmo sentido. É contra esta mentalidade que mulheres e também os homens de esquerda precisam lutar. Lugar de mulher é na construção da história, dona de suas idéias, de seu corpo, de seus sentimentos e feliz.

Debate Sindical – Quais as mulheres que não podem ser esquecidas na luta por um mundo melhor?

Giannotti – Todas as que se recusam a apanhar dos seus pais, irmãos e maridos. Todas as que se recusam a abaixar a cabeça frente aos machos. Todas as que se engajam na luta para mudar esta sociedade capitalista, nos seus vários aspectos: de exploração de classe, de machismo, de opressão das minorias, dos negros, índios, e de todos os que não são da classe exploradoras.

Não podemos esquecer de todas as mulheres vítimas desta exploração-opressão. Agora, mais do que das vítimas não podemos esquecer de quem luta para que a situação da mulher mude. E com ela, mudar a situação de todos os explorados e oprimidos.

Debate Sindical – Qual a melhor emancipação para a mulher?

Giannotti – Se sentir gente, e ser tratada como gente. Isto não acontece hoje. Em geral é vista como uma bonequinha, ou uma idiotinha, ou carne de açougue, exposta em qualquer banca de revistas. Mais de 90% das capas de revistas são uma verdadeira ofensa à inteligência e dignidade da mulher. A mulher quase sempre aparece cuidando de se enfeitar para ser valorizada pelos compradores machos. Todas estas capas de revistas com mulheres saradas, siliconadas, devidamente lipoaspiradas, sempre rindo mostrando lindos dentes, poderiam ter a mesma manchete: “Mulher não precisa ter cérebro, caráter, dignidade, personalidade.” Basta se enfeitar, que seu preço sobe. Os machos vão gostar.

Debate Sindical – Como você faria uma declaração de amor para uma mulher?

Giannotti – “Vamos juntos?”. Para ir junto, a qualquer coisa, tem que ser igual. Se sentir igual.
 


(Publicada originalmente na Coluna Debate Sindical, no sítio Porto Gente)