Patrícia Oliveira

Patrícia Oliveira é uma das fundadoras da Rede de Comunidades Contra a Violência.

[Por Gizele Martins* – Instituto PACS – 23.06.2017]  Patrícia Oliveira é militante desde muito cedo. Irmã de um dos sobreviventes da Chacina da Candelária, ocorrida em 1993, ela é defensora de direitos humanos e uma das fundadoras da Rede de Comunidades Contra a Violência, criada em 2004. Atualmente Patrícia integra o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, cujo principal objetivo é a “identificação do risco de tortura” a partir do monitoramento de centros de privação de liberdade. Por ser uma das grandes referências no tema da segurança pública no Rio, convidamos Patrícia para falar um pouco sobre a militarização e como as várias expressões do racismo institucional dificultam e impedem a vida da população negra e favelada do Rio de Janeiro.

Nesta entrevista, ela traça um panorama do aumento da violência policial desde a década de 1990; fala sobre a falácia do discurso governamental sobre a “falência das Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs, surgidas em 2008”; além de mostrar como o governo reforça a construção de um imaginário de uma sociedade do medo, que deve ser temida, que necessita ser controlada cada vez mais pela polícia. Confira.

Na sua análise, por que houve aumento das chacinas na década de 1990?

A militarização nas favelas na década de 90 foi bem diferente do que está acontecendo atualmente. Naquela época, os policiais que mais matavam ganhavam mais. Eles ganhavam um bônus que ficou conhecido como a “gratificação faroeste”, o que fez aumentar muito o número de pessoas assassinadas naquele período. Surgiram vários casos de crianças e adolescentes assassinadas na época. Eram constantes as operações em favelas. Surgiram vários grupos de extermínios. Os ‘Cavalos Corredores’, por exemplo, era um deles. É daí que surgem as várias chacinas no Rio de Janeiro. A polícia mostrou a sua cara naquele momento.

Os desaparecimentos forçados também começaram a aumentar junto às chacinas. Naquele período, ocorreu a Chacina de Acari e 19 pessoas ficaram desaparecidas. Em 1993, aconteceu a Chacina da Candelária do Centro do Rio de Janeiro: oito meninos em situação de rua foram assassinados, outros sobreviveram. No mesmo ano, em agosto, acontece a Chacina de Vigário Geral. São 21 pessoas assassinadas por policiais do grupo de extermínio ‘Cavalos Corredores’. Ou seja, foram inúmeros assassinatos que ocorreram no Rio naquele período, e esse número de mortos e desaparecidos só vêm aumentando.

Diante de inúmeras chacinas, quais foram as formas de denúncia, como os casos se tornaram conhecidos?

Na época, a Anistia Internacional Brasil começou a acompanhar esses casos das chacinas. Alguns destes casos acabaram tendo uma repercussão grande. Assim como o desaparecimento do Jorge Careli, de 30 anos, servidor público da Fiocruz, que desapareceu ao ser pego por policiais na favela Varginha, em Manguinhos. Além dos outros casos já citados, também aconteceu outra chacina em 1994, a de Nova Brasília, no Complexo do Alemão, também cometida por policiais. É quando as chacinas viram notícias internacionais.

Os olhos do mundo estavam voltados para o Rio. É quando a polícia acaba ficando um pouco inibida. Começam os julgamentos dos policiais envolvidos em algumas destas chacinas. A imprensa começou a acompanhar cada vez mais de perto. Foi quando se percebeu que a violência nas favelas é sempre maior do que em qualquer parte da cidade.

Os familiares destas vítimas não se conheciam, mas foi no decorrer destas chacinas que eles se conheceram. Quando ocorria um caso em uma favela, um familiar de vítima ia dar apoio aos novos familiares. Foi quando surgiram as grandes passeatas, manifestações. E quando se formam os grupos de apoios.

Em 2007, volta a ter um aumento das chacinas no Rio, assim como agora em 2017. Qual sua análise sobre esta situação?

Há um aumento nos casos de autos de resistências nas favelas. Os casos aumentam quando temos os próprios governadores afirmando que a solução só vem a partir do investimento na segurança pública. Exemplo disso foi quando o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, disse que “mulher de favela é fábrica de produzir marginal”. É uma autoridade pública fazendo falas de ódio e de violência. Lembrando que qualquer autoridade sempre teve falas de violência, sempre dizendo que é preciso uma resposta rápida à sociedade. São respostas com violência, dizendo que vão resolver com mais violência, apenas com polícia.

Os “autos de resistência” foram criados como medida administrativa durante a Ditadura Militar a fim de legitimar a repressão do regime e hoje entende-se que muitas vezes funcionam como uma “licença para matar” e encobrir crimes por parte dos agentes públicos de segurança, embora o ordenamento jurídico brasileiro não preveja a exclusão da ilegalidade ou da investigação pelo simples registro dos “autos de resistência”. Ainda assim, a prática constitui-se como um “modus operandi’’ para as polícias e, em segundo plano, para o judiciário dispensar elementos fundamentais para o devido processo de investigação de um homicídio decorrente de intervenção policial

Fonte: http://negrobelchior.cartacapital.com.br/fim-dos-autos-de-resistencia-temos-o-que-comemorar/

Acredito ainda que o atual Secretário de Estado de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Roberto Sá, não tem o controle da secretaria. Ele quase não vem a público dar entrevista ou explicar sobre a atual situação do Rio.

Ele não se pronuncia sobre as operações que ocorrem nas favelas, sempre põe um comandante da Polícia Militar, alguma chefia da polícia para falar, nunca é ele. Isso acaba sendo um problema porque, na hora de cobrar, não sabemos a quem cobrar. É a chefia, é ao comandante, é ao secretário que temos que cobrar?

Como a militarização está presente na vida cotidiana do morador de favela e periferia do Rio?

Há pouco tempo, foi aberta uma votação na Câmara Municipal do Rio de Janeiro para que a Guarda Municipal pudesse ter armas letais. Esta Guarda Municipal não precisa estar armada, porque ela existe para cuidar de praças, cuidar de espaços que não necessitam de armamentos. Eles querem ter poder de polícia e, se eles já são truculentos, imagina, se eles se armarem? Eles teriam ainda mais poder de intimidar, haveria ainda mais problemas para todos nós que circulamos a cidade.

Outro espaço militarizado é o sistema prisional. Até na hora de um atendimento médico os presos precisam passar por PMs. A própria ‘disciplina’ a ser seguida naquele espaço é militarizada: O preso fica de costas, com as mãos para trás. Quando um deles ou uma delas precisam estar em algum hospital, também são algemados. Tudo é mais difícil para este público.

No Degase, a militarização se expressa nos corpos dos jovens negros, que seguem um ritual de cabeças baixas e mãos para trás na presença dos agentes. Foto de ThomasBauer/Todos os direitos reservados.

“No Degase [o Departamento Geral de Ações Socioeducativas é um órgão do Governo do Estado do Rio responsável pela privação de liberdade de adolescentes em conflito com a lei], as mesmas práticas acontecem. No ano passado, um adolescente estava queimado e em coma no hospital, e ele permaneceu o tempo inteiro algemado, mesmo em coma. É a militarização o tempo inteiro presente na vida deles”

No final de 2016, o ex-secretário de Segurança Pública, Mariano Beltrame, afirmou que as UPPs haviam falido, discurso que o atual secretário tem sustentado durante estes primeiros meses de 2017. Qual sua opinião sobre isso? Você acredita que este programa faliu?

A UPP nada mais é do que o ‘Grupo de Policiamento em Áreas Especiais’, o GPAE, que entrou em várias favelas do Rio nos anos 2000. O que tem de atual é que a UPP tem dinheiro, tem recursos. A UPP era a menina dos olhos de muitos empresários. Afinal, quando o assunto é segurança, se busca recurso. Esse discurso de que as UPPs estão falidas acaba colocando um terror na cabeça da população. É um discurso produzido para se conseguir mais recursos, mais dinheiro. É um discurso que faz acreditar que é preciso, sim, investir na segurança pública, porque é ela que vai resolver o problema da sociedade. Eles vendem isso para a população, vendem o medo, o pânico e a população acaba apoiando.

* Gizele é jornalista, comunicadora popular e membro da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj).