Por Vito Giannotti, abril de 2004

Os anos passam e a memória se esmaece. Nesse embalo fica fácil embaralhar as cartas e falsificar a história. O Globo de 23 de março é um belo exemplo dessa manobra: “Disposição golpista da esquerda divide opiniões”. Taí o fato consumado. Para O Globo não há mais dúvidas. A disposição golpista é real, a ponto de se dividir opiniões.

Na intelectualidade carioca está ganhando corpo uma interpretação do golpe que é falsa e ideologicamente dirigida. Vejamos só o enunciado de um discurso que seria longo demais para esse boletim.

Primeiro: o golpe da direita já estava sendo preparado desde maio de 1954. Foi tentado em agosto antes e depois da morte de Vargas. Foi retomado antes da posse de Juscelino, em 1955, e na renúncia de Jânio Quadros, em 1961. Inicialmente foi articulado, com decisão total, a partir da fundação do IPES, em 1962. Ou seja, o golpe da direita não foi para evitar um fantasioso golpe da esquerda. A direita estava decididíssima a acabar com a democracia para, no discurso histérico da época, acabar com o perigo comunista.

Segundo: Quem hoje quer inventar que a esquerda estava preparando o golpe está mentindo descaradamente. O PCB, única força real de esquerda com inserção nacional, não preparava nenhuma revolução socialista desde 1948. Seu sonho era uma chamada revolução democrática-burguesa, liderada pela burguesia nacional. Não havia projeto nenhum de tomada de poder. Além do mais, o equilíbrio mundial implantado desde os acordos de Ialta não admitia esta hipótese.

Afinal não havia nenhuma ameaça de golpe pela esquerda. Havia uma mobilização popular parcial para exigir mudanças mínimas, como as reformas de base. E havia muitos discursos vazios, muitas “bravatas”, como se diz hoje, no campo da esquerda.

Terceiro: A distorção histórica de quem quer plantar a idéia que o golpe militar foi um contra-golpe, ou, como dizem, um “golpe preventivo” quer fazer esquecer que a esquerda que, dizem eles, iria dar este tal golpe, estava tão longe disto que quando o golpe militar veio, não reagiu. Que esquerda pronta para dar o golpe era esta, se quando a direita veio com seus tanques, não teve um só tiro. Esta esquerda, que os que hoje falam golpe preventivo, estaria pronta para implantar seu regime, não matou um só mosquito. Não deu um tiro de festim sequer. Cadê o perigo da esquerda que exigiu um “golpe preventivo?”

Para quem, como O Globo e a imensa maioria da mídia apoiou o golpe militar, a tentativa em curso, hoje, é se limpar dizendo que “somos todos iguais”. Ou a direita dava o golpe, ou a esquerda daria.

E para os que já foram de esquerda, e hoje estão arrependidos, esta teoria do golpe de direita para se prevenir de um golpe de esquerda, serve para justificar sua mudança de posição. Para poder dormir em paz na cama do neoliberalismo dominante.