Foto: Reprodução da página 'Maré vive', no Facebook

Foto: Reprodução da página ‘Maré vive’, no Facebook

[Por Tatiana Lima, para o NPC] A página “Maré Vive” desde às 6h da manhã do dia 6 de fevereiro relatava as atividades violentas da polícia na Maré e informava que os moradores estavam sitiados em casa. A página tem o cuidado de não lotar a timeline com informações repetidas. Isso dá uma boa noção da proporção, em tempo real, do tiroteio e da violência devido à ação da polícia em suposta operação contra traficantes. Nos comentários da página no Facebook, moradores relatavam e complementavam as informações. O acesso é público. Qualquer pessoa pode ler. Pelo Twitter, a página do “Fogo Cruzado” também já relatava desde cedo o tiroteio, a partir das informações recebidas pelo App de moradores de lá. A página produz informações com fontes apuradas e checadas.
Apesar disso, pelo que meus amigos moradores da Maré e a página Maré Vive informaram, somente bem à tardinha os principais canais de mídia noticiaram a barbárie desta “operação policial”, que fechou 40 escolas e matou três pessoas. Mas a equação “mídia e segurança pública” para qual quero chamar sua reflexão não termina aí. Foi somente quando a violência saiu da fronteira existente entre essa parte da cidade (favela) e o resto da cidade que o jornalismo da mídia comercial produziu: A PAUTA. Ou seja: o que ocorria na Maré só virou notícia quando o trânsito de três vias foi interrompido, “parando a cidade”, quando ficou insustentável não ver ou saber o que se passava dentro da Maré (conjunto de favelas com mais de 150 mil moradores). Quando a situação piorou muito e poderia atingir o restante da população carioca e fluminense que o imbróglio desta “operação policial” se tornou notícia. E isso já era à tardinha.
Foi então que se noticiou a pauta violência de uma suposta operação do BOPE e depois PM. Mas tendo como principal personagem da PAUTA o o trânsito impedido.
Vamos dar um salto aqui para um relato pessoal. Eu, naquele dia (06/02), vi o RJTV. Mas liguei a TV com oito minutos de atraso. Só posso falar então sobre o jornal que vi a partir de 12h08. E por lá eu não soube do que ocorria na Maré. (Se passou nesses 8 minutos anteriores, me informem, por favor). Importante destacar: neste horário a página Maré Vive já denunciava há cerca de quatro horas  o tiroteio. Desliguei a TV e voltei a ler e estudar. Dormi também, porque estava com febre. E às 18h, pelo twitter e pelo facebook recebi uma chuva de informações sobre a situação da Maré pelos canais de mídia da Maré e Fogo Cruzado.
Vamos dar outro salto aqui. RJTV2. Enquanto eu escrevia esse post (análise) e relato, começou o telejornal. Os repórteres que entraram ao vivo todos falaram de links na rua: dois em frente a delegacias de polícia: na DP da Civil e na DP de Bonsucesso. Outro link foi com uma repórter no Souza Aguiar. A repórter inclusive perguntou ao representante da polícia: “o que os moradores dizem?”. Veja: cabe ao inspetor da polícia que dizer o que os moradores da Maré viram: “troca de tiros entre polícia e o tráfico”, ele responde. Mas faz questão de certificar que “será a perícia que vai dizer o que houve”. Em reportagem, o governador é cobrado e fala do plano nacional integrado com o Poder Federal. Ao vivo mais um link com repórter e apresentador entrevistando o secretário de segurança pública, porque o governador se recusou a dar uma segunda  entrevista. O repórter questiona a falta de mais policiamento ostensivo. Já a apresentadora questiona sobre a operação feita em cima de denúncias que não se mostraram reais, em uma operação que parou a cidade e matou duas crianças. Deixa o secretário pressionado. É visível. Mais um link ao vivo é anunciado agora direto da sala do Centro de Operações de trânsito com uma repórter. No total, foram seis links ao vivo, uma cobertura enorme sem dúvida, com todo o telejornal praticamente tratando o caso, mas em nenhum momento em mais de 30 minutos de telejornal um morador da Maré  sequer foi entrevistado. Apenas a mãe do jovem Jeremias morto. 30 a 45 segundos em 35 minutos de telejornal. Não houve um link sequer com um ao vivo no Conjunto de Favelas da Maré. Pode ter sido por falta de segurança para equipe, pode claro. Porém, também pode ter sido por falta de fonte feito do descrédito dado a voz do morador pela mídia comercial em diversos casos como esse. Porém, para termos absoluta certeza teríamos que perguntar  a equipe do RJTV2.
Contudo, levanto essa questão porque a narrativa do RJTV afirmou ao longo da edição do telejornal que o tiroteio começou às 12h (ao invés de 6h). Ou seja: o RJTV2 não considerou a versão dos moradores exposta no camal de  mídia Maré Vive. A versão considerada como mais próxima de explicar o acontecimento foi a versão policial de uma suposta denúncia de que quatro policiais teriam sido sequestrados, que desencadeia a operação das 12h. A justificativa que teria levado a polícia a fazer a ação na Maré. Até é citado, muito rapidamente, que o BOPE também fez uma operação mais cedo na Maré. Mas sobre essa nada é bem informado. O telespectador não sabe o porquê.  Não se questiona o secretário sobre o motivo.
Voltando a reflexão sobre A PAUTA, quero deixar claro que em nenhum momento pretendo desqualificar o trabalho jornalístico feito. Mas busco demonstrar que, nesta equação jornalística do que é notícia, a cultura do medo e a versão policial dos fatos é a escolha do olhar de construção da pauta. Porque essencialmente a segurança pública na Maré só é pautada quando a morte (e nem sempre em todos os casos) ou o trânsito interrompido de vias importantes da cidade tornam o TIRO visível para a população. É o medo que impulsiona a cobertura jornalística da mídia a produzir e definir o que é pauta e, portanto, notícia. Tanto é que o gancho da notícia não é a segurança pública da Maré (de seus moradores), mas a insegurança dos moradores do restante da cidade. Se não fosse assim, em algum momento a narrativa questionaria em reportagem e/ou na entrevista com o secretário sobre o estado de sítio, as denúncias de casas invadidas e a segurança dos moradores da Maré mediante as operações feitas sem investigação (motivo) justificável para expor 150 mil moradores ao risco da letalidade e violência física e psicológica de um conflito armado direto. Porque volto a repetir: este episódio de hoje começou às 6h da manhã com o BOPE e se agravou com a suposta denúncia de policiais sequestrados. A segunda operação seria uma situação de emergência, mas e a primeira do BOPE? E como, numa situação de emergência com agentes sequestrados, é a própria PM que vai resolver, ao que parece sem uma ação protocolar? Qual é a estratégia, o protocolo nestes casos? O que esses policiais estavam fazendo lá? Como é e onde foram sequestrados? Quem eram? Não se sabe até porque oficialmente até a edição do RJTV2 não se confirmou o sequestro.
O RJTV2 questiona e pressiona por mais segurança pública. Isso é inquestionável. Nos 35 minutos de telejornal está claro. Inclusive, pressionou fortemente o secretário de segurança pública do Rio de Janeiro. Mas também está claro que a fábrica do jornalismo comercial tem lado. E deixou de fazer perguntas. Pressiona o Poder Executivo, mas com a produção de informação de uma classe que pede ainda mais policiamento ostensivo. Então, eu pergunto: a partir desse jornalismo, o que é pauta para você? E por fim: o que é pauta jornalística? Para mim, que também tenho lado como todos os jornalistas (ainda que neguem), meu lado é do direito à vida sem seleção. E neste caso, é o direito à favela.
É certo que é algo diferente para quem está na mira do tiro todos os dias, como mostrou o jornalismo parcial de sobrevivência da página Maré Vive. Essa página, no fim, que produz no silêncio também parcial do mainstream midiático o complemento essencial para a formação de uma opinião sobre segurança pública no Rio de Janeiro.
A comunicação popular de favelas, ou seja, o jornalismo de favelas não pode ser ignorado como fonte, voz e lugar jornalístico na produção de informação, porque ele pauta por um ativismo de sobrevivência a cidade, o direito à vida, tornando seus relatos notícias e informações jornalisticamente relevantes e de interesse público.
Caso esse jornalismo de favelas não existisse, a produção de relatórios, opinião e dados sobre favela e segurança pública, cotidiano , cultura e a própria  construção da memória do Rio de Janeiro seria outra.
Mas a pior parte seria a possibilidade de mais mortes no Rio de Janeiro. Por é essa rede de mídia que com suas gambiarras produz um jornalismo local de sobrevivência, que auxilia no exercício diário do direito à vida na favela. E isso não pode ser mais ignorado.