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Prefácio do livro “Padrões de manipulação na grande imprensa” do Perseu Abramo

URGENTE. LUMINOSO. INDISPENSÁVEL.

Por REGINALDO MORAES*

A publicação deste livro não poderia ter momento mais oportuno do que este em que a mídia opera como maestro de uma grande orquestração, a orquestração de um golpe de Estado e de uma tentativa de impor um novo regime à jovem democracia brasileira, subordinando o voto a uma espécie de superego oligárquico composto pelo triunvirato judiciário-midiático-financeiro.

Os capítulos deste volume giram em torno de um pequeno e precioso ensaio analítico de Perseu Abramo. Um exercício de pensamento crítico voltado ao desvendamento das artimanhas, dos métodos e recursos do discurso manipulador.

O mestre Perseu e os autores deste livro colocam diante de si o manancial de tragédias e comédias encenadas pela mídia brasileira e buscam identificar os padrões de seus artefatos, aquilo que poderíamos também chamar de rotinas lógicas da desrazão, de desconstrução da realidade e da criação de uma nova “supra-realidade” que a substitua nos corações e mentes dos leitores, ouvintes e telespectadores.

Dada sua relevância nos mecanismos de socialização, de formação das sensibilidades e dos padrões de apreensão da realidade, a mídia se tornou um instrumento crítico para coordenar ações políticas. Ela descreve, contextualiza, dá sentido, mas também julga, orienta o julgamento e a execução dos atos. Mais do que os partidos, substituindo-os, ela se torna o “comando supremo do golpe”, o quartel-general da ocupação do país.

É certo que o comportamento dos indivíduos, suas decisões e ações dependem, em primeiro lugar, de seus interesses. Podemos até dizer que resultam de um cálculo racional. Porém, esses interesses não são uma evidência primária, um dado da realidade – eles não são objetivos, no sentido de estarem no ar, com um significado invariável, fixo, universal. Eles são percebidos, medidos e avaliados por meio de certos enquadramentos que lhes dão significado e que avaliam sua relevância. O enquadramento é decisivo para definir os “dados da realidade”. O enquadramento formata a percepção. No mundo político, esse “enquadramento” não diz respeito a tópicos específicos, a listas de políticas específicas, por exemplo. O enquadramento é uma visão de mundo, um modo de perceber, uma percepção geral do bem e do mal. O enquadramento – o modo como o indivíduo vê e julga os seus interesses – é uma espécie de estrutura a priori, uma pré-formação das percepções.

Essa percepção difusa e dominadora não é difundida apenas (nem principalmente) pelo Jornal Nacional, nem pela propaganda política explícita. Nesse papel, é mais importante o jornalismo policial, o esportivo, por exemplo – que inoculam valores mais “inocentemente”, quer dizer, sem parecer que inoculam. E é importantíssimo o que se chama de “entretenimento” – aliás, cada vez mais o jornalismo tem virado entretenimento. O editor do Jornal Nacional, por exemplo, não é um jornalista – ele é formado em publicidade. Reparem: a sequência do JN é uma sequência dramática – e a voz, o tom, a sequência de imagens, a própria exposição das caretas dos apresentadores – tudo é treinado desse modo, para produzir a emoção desejada. Mas a mídia tem mais ferramentas de entretenimento para produzir emoção desejada e valores desejados. Novelas e séries dramáticas, programas de humor, talk-shows e programas de variedades e auditório – é ali que desfilam e se desenham valores, heróis, vilões, estórias edificantes e parábolas.

É ali também, mais até do que nas academias, revistas e jornais, que estão os melhores “intelectuais orgânicos” da burguesia. Já houve momentos, no mundo moderno, em que a socialização dos indivíduos ainda era basicamente produzida na família, na guilda, nos grupos sociais especializados, quase “castificados”. Ou em organizações mais amplas, como a igreja. Os sistemas nacionais de educação – uma aquisição relativamente recente na história humana – cumpriu parcialmente essa missão, numa fase estratégica da vida, a infância. Hoje, porém, temos ambas (escola, igreja) confrontadas com um grande arco de meios de comunicação que substituem algumas de suas funções, às vezes com enorme vantagem.

Já é usual dizer que hoje crianças e adultos aprendem mais com meios de comunicação (rádio, TV e, depois, internet) do que com a sala de aula. Faz sentido. Mas não aprendem apenas as “habilidades cognitivas”, como escrever, ler e contar, entre as fundamentais. Aprendem também as “habilidades não-cognitivas” associadas à interação humana, ao viver e trabalhar em grupos.

No outro registro – aquele outrora coberto pelas igrejas – também não é menor a mudança. Já houve tempo em que as casas de famílias ricas (e mesmo remediadas) reservaram um espaço especial para os deuses domésticos – um altarzinho, oratório, um canto em que se colocava a imagem da Virgem, por exemplo. Hoje, pode-se dizer, esse mesmo espaço “sagrado” é ocupado, nas casas, pelo aparelho de TV – quando ela fala, calamos, ouvimos, por vezes nos inebriamos ou, simplesmente, seguimos a fé. Não por acaso, as igrejas perceberam que tinham que ir à TV: não se trata apenas dela ir ao templo, o que também acontece, mas do templo se deslocar para ela. A “participação” se faz pela tela, a comunhão, a “eglesia”, a reunião dos espíritos. Há no Brasil perto de 90 redes de rádio e TV, controlados por meia dúzia de famílias. E dentro desse universo, um emaranhado de programas dominados por igrejas, que martelam, dia a dia, hora a hora, as mensagens do apocalipse do apedrejamento dos pecadores. Até podemos dizer que atualizaram o famoso dito bíblico: A mídia é meu pastor, nada me faltará, com seu cajado e sua vara, ela me guiará.

Assim, se queremos compreender os mecanismos essenciais de produção das ideias, sentimentos e, por extensão, das atitudes, temos que observar quem controla essas duas agências. Quem as cria, quem as controla, quem formula suas regras e pautas. Não é casual que as organizações da nova direita se dirigiram a elas com toda a energia e recursos de que dispunham. Os grandes meios de comunicação de massa e as igrejas – e, claro, a igreja embutida na TV e no rádio.

Mestre Perseu e os demais autores deste livro nos forneceram ferramentas essenciais para compreender essa mídia, seus métodos, suas artimanhas. A esfinge dizia a quem diante dela aparecia: decifra-me ou te devoro. Este livro é uma arma para que decifremos – evitando a segunda opção.

 

* Reginaldo Moraes é professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu) e colaborador da Fundação Perseu Abramo (FPA). Graduou-se e doutorou-se pela Universidade de São Paulo (USP). É colaborador do programa de Pós-Graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).