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[Por Najla Passos – NPC/MG] O economista português Francisco Louçã é um os principais nomes da esquerda europeia hoje: foi um dos fundadores, em 1999, do partido socialista Bloco de Esquerda, que coordenou de 2005 a 2012. No 22º Curso Anual do NPC, que ocorreu no Rio de Janeiro, de 16 a 20/11, ele explicou porque o 1% mais rico da população consegue dominar os outros 99%: “a burguesia domina os meios de produção e reprodução de bens materiais, mas também tem os meios de legitimação”.

Dentre esses meios de legitimação, ele destacou o controle do sistema educacional, o judiciário e – é claro – a imprensa. A partir daí, mostrou como a burguesia constrói o que chamou de “banalidades” ou “sensos comuns” – aquelas ideias pré-concebidas pela classe dominante que os trabalhadores acabam convencidos de que são genuinamente deles.

Depois da palestra, Louçã conversou com o NPC e outros jornalistas sobre este tema e vários outros assuntos: a crise da globalização, o avanço do conservadorismo, a eleição do Trump, o impeachment da Dilma, os efeitos da política de austeridade sobre os trabalhadores, os desafios da comunicação sindical e o papel das esquerdas nesta conjuntura tão adversa. “Para ganhar a maioria é preciso partilhar a experiência, partilhar a linguagem, partilhar os sentimentos e as emoções”, afirmou.

Confira a entrevista completa:

BoletimNPC – O mundo está dando sinais de retrocesso com o tratamento dado aos refugiados, às políticas de direitos humanos e mesmo com as escolhas de novos governantes, como Donald Trump. Por que isso acontece?

Francisco Louçã – Por que a globalização está em crise. A globalização foi um aparelho poderosíssimo para se organizar a circulação de capitais, e, portanto, para liberalizar as economias e aumentar a concentração de riquezas, mas, consequentenmente, ampliou também as desigualdades. E este aumento das desigualdades produz um problema: cria regimes políticos muito frágeis, cria instabilidades, perturbações, medos, inseguranças. Cria guerras, que criam refugiados, que criam  dificuldades nas respostas sociais. Portanto, há uma espécie de efeito dominó de queda sucessiva em pilhares da vida normal, que tornam muito mais instáveis os regimes de políticas sociais. Não basta viver numa torre de marfim. É preciso que ela tenha uma base, que tenha alicerces. E se não têm, torna-se muito perigoso. Viver imensamente rico e imensamente poderoso depende da aceitação daqueles que são explorados.

BoletimNPC –  Dá para classificar este momento em que vivemos como um fim de ciclo? Está correto dar uma dimensão assim tão profunda a esta crise?

Francisco Louçã – Isso é muito difícil de saber, porque os fins de ciclo nós só percebemos bem no fim. Mas esta é certamente uma época de mudanças. Não se esperava há um ano atrás, por exemplo, que Trump ganhasse as eleições dos Estados Unidos, e isso provoca o  reforço de posições conservadoras, reacionárias contra o trabalho, contra o direito das mulheres, contra o direito dos imigrantes, cria um nódulo, mas, em alguma medida, isso também é resultado da crise da globalização, porque são as vitimas da globalização – homens brancos, trabalhadores dos Estados Unidos – que deram a vitória a Trump. Portanto, quando a esquerda ou as forças populares não polarizam o suficiente criam-se campos abertos em que o populismo de direita pode ganhar força. Isso é uma mudança importante.

BoletimNPC – Esta crise da globalização está atingindo seu limite? Ou pelo menos seu ápice?

Francisco Louçã – Não, a crise da globalização vai continuar. Já vivemos muitos anos desde a última crise financeira, com efeitos dramáticos no mundo inteiro. E isso vai continuar nos próximos anos.

BoletimNPC –  Voltando ao Trump, a decisão da Inglaterra de sair da comunidade europeia tem relação com a eleição dele?

Francisco Louçã – Não creio que tenha relação direta com a eleição americana, mas creio que as causas são parecidas. Na Inglaterra, uma parte da população, os trabalhadores mais velhos, sobretudo, votaram com uma enorme desconfiança contra o autoritarismo da União Europeia, enquanto os mais jovens votaram pela continuidade [do país na zona do Euro]. Mas a afirmação de uma hegemonia humana contestando a União Européia também é perturbador para a história da Europa. Por isso mesmo, há uma relação comum nesta crise global, nesta crise da globalização.

BoletimNPC –  Como esses dois fatores, a eleição do Trump e a decisão da Inglaterra, influenciam a atuação das esquerdas nos países da periferia da Europa?

Francisco Louçã – Não tem um impacto direto, a não ser a revelação de que a União Européia está vivendo uma crise, e que esta crise vai ampliar-se. Dificilmente a União Europeia e o euro resistirão a um novo episódio de crise financeira, e é certo que Donald Trump incentiva forças de extrema direta, como a Força Nacional da Franca, as correntes de direita da Holanda, da Áustria e da Polônia. E, sob este ponto de vista, os conflitos políticos tendem a tornarem-se mais chocantes.

BoletimNPC –  O senhor aponta o euro como uma forma de asfixia da economia europeia. A moeda conjunta está fadada ao fracasso?

Francisco Louçã – Está. Ela é sempre um modo de submissão das economias periféricas, com grande vantagem para circulação de capitais, em favor da economia central. O euro tem uma estrutura que dificilmente resiste a grandes abalos sistêmicos. A crise do euro agravou a crise das dívidas soberanas dos países periféricos – a Grécia é, talvez, o exemplo mais evidente, mas Portugal e Espanha também -, criou crises bancárias importantes, como na Albânia, e, por isso, o desenvolvimento de uma nova dificuldade nos mercados financeiros pode se acentuar.

BoletimNPC –  No Brasil, o governo Temer já estreou falando em austeridade, um tema bastante indigesto para a chamada periferia europeia. Lá, especialmente em Portugal, como essa política de austeridade tem atingido os trabalhadores?

Francisco Louçã – A política de austeridade constitui numa reorganização das contas do Estado, com grande aumento dos impostos no trabalho, e com redução das aposentadorias e dos empregos – ou seja, com aumento do desemprego ao mesmo tempo. Isso reduziu o poder salarial da maioria da população e aumentou o custo de impostos. Foi isso a política de austeridade. De um ano para cá, o novo governo de Portugal, que tem uma aliança com as esquerdas, tem mudado estas políticas, baixando os impostos sobre o trabalho e recompondo os salários e as pensões.

BoletimNPC –  Na sua palestra durante o 22º Curso Anual do NPC, o senhor falou sobre seu livro “Os burgueses – quem são, como vivem, como mandam”, resultado de uma ampla pesquisa sobre o tema. Então, de forma bem objetiva, por que 1% mais rico da população consegue dominar os 99% restantes?

Francisco Louçã – A resposta tradicional que a esquerda tem dado – e que é verdadeira – é que é porque a burguesia domina os meios de produção e reprodução de bens materiais, mas também porque a burguesia tem os meios de legitimação.

BoletimNPC –  Na sua palestra, o senhor falou também sobre a construção do senso comum como arma de dominação ideológica. É este senso comum que foi construído quando se colocou, por exemplo, que o impeachment no Brasil era uma opção legal?

Francisco Louçã – Vocês brasileiros sabem melhor do que eu, mas, certamente, para derrubar a Dilma, que foi eleita democraticamente pelo povo brasileiro, era preciso destruir a legitimidade que ela detinha. E para isso, o discurso do judiciário foi muito importante para afirmar uma espécie de criminalização abstrata e uma perseguição intencional contra o Lula em particular, e contra a Dilma, mesmo que ela não fosse acusada de nada. Neste sentido, o processo de julgamento no Congresso brasileiro foi uma fraude lamentável, foi um simulacro de justiça sem acusação e sem qualquer fundamentação, e um jogo político puramente de busca de poder, sem qualquer base de leitura democrática.

Para isso, a afirmação entre o povo de que era preciso demitir Dilma foi muito importante. É verdade que há algum sentido: o PT foi derrotado publicamente antes mesmo desse episódio, em alguma medida por responsabilidade sua também, porque permitiu a corrupção e a fragilidade do poder, mas, sobretudo, por efetivar uma política de alianças com seus piores inimigos. E quando se põe o lobo no galinheiro, as galinhas não estão protegidas.

BoletimNPC –  Como as esquerdas, os movimentos sociais, podem utilizar este conhecimento acerca de como a direita constrói o senso comum para poder disputar os sentidos e significados das ideias criadas socialmente?

Francisco Louçã – Depende muito da experiência dos movimentos populares de cada país, porque cada país tem suas próprias experiências culturais. O Chico Buarque, o Caetano e o Ney Mato Grosso, nossos grandes músicos e outros produtores culturais criam uma certa história brasileira. E uma boa política de massas tem que se basear nessa história, nas lendas, nos mitos, nos vilões, nas pessoas, no povo, nesta capacidade de criação. E se o fizer, pode ter um discurso que envolva o povo. E é aí que está a chave para a estratégia política para se ganhar a maioria: para ganhar a maioria é preciso  partilhar a experiência, partilhar a linguagem, partilhar os sentimentos e as emoções. Assim se faz uma estratégia vencedora.

BoletimNPC –  Quais os desafios da comunicação sindical hoje?

Francisco Louçã – Os sindicatos têm desafios muito difíceis. Eles precisam se democratizar ao extremo, serem muito democráticos, muito abertos. Também precisam ser mais profundos, porque têm que representar trabalhadores que nunca foram sindicalizados e que têm relações contratuais muito frágeis. Também precisam ser muito mais imaginativos, mais unitários, mais base. E a comunicação é muito importante neste processo. Ela tem que envolver, porque se for só para reproduzir pensamento da direção do sindicato, está perdida. A comunicação sindical tem que ouvir as pessoas, puxar para o lugar que elas estão, para sua imaginação, para sua criatividade, para seus poemas, para seus cantos, para sua voz.