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Para palestrantes, combate ao racismo não é algo separado da luta de classes

“Comunicação e cultura na luta de classes e na luta de cada um” foi o tema da mesa realizada no dia 25 de novembro pelo Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC) em seu 23º Curso Anual, no Rio de Janeiro. Participaram do debate Adenilde Petrina, professora e militante do Movimento Negro em Juiz de Fora, Renata Souza e Tatiana Lima, jornalistas e pesquisadoras, Douglas Belchior, professor da Uneafro e editor do Blog do Nego Belchior, e Raphael Calazans, integrante do Coletivo Papo Reto, do Complexo do Alemão, no Rio. A mediação foi feita pelo sociólogo e produtor cultural Juan Leal.

Todos negros e negras, os palestrantes deixaram claro, cada um a seu modo, que o racismo está no cerne da luta de classes. Eles também falaram sobre experiências de comunicação e cultura popular nas favelas e periferias, sendo que uma delas pôde ser vivida bem de perto pelos participantes do curso: o Slam de Perifa (https://www.facebook.com/slamdeperifajf/?fref=ts). O grupo, de Juiz de Fora, reúne jovens que fazem uma performance que parece batalha de declamação de poesias com fortes críticas sociais e políticas. Chagas da Silva, Mohammed Silva e Yuri Souza emocionaram os participantes com belas interpretações e temáticas sensíveis como homofobia, racismo, violência contra a mulher e exploração capitalista.

Renata Souza, que terminou neste ano o seu doutorado em Comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro, criticou a noção de meritocracia e ressaltou que as oportunidades para negros e brancos, favelados e moradores do asfalto – como se costuma dizer, no Rio, daqueles que não vivem em favelas, não são as mesmas. Ela foi enfática ao afirmar que o debate sobre o feminismo e o racismo não esvaziam o debate sobre a luta de classes. “Tanto no debate do racismo quanto no do feminismo está o debate da superação das classes. Não adianta dizer que a luta de classes hoje está sub-representada quando falamos de feminismo e de racismo. Isso é o cerne, a base de tudo”, disse. A jornalista, que iniciou sua carreira na imprensa sindical, afirmou que os sindicatos também têm responsabilidade nesse debate e precisam se sensibilizar a partir de seus funcionários ou sindicalizados que vivem na periferia. A luta de classes precisa estar colocada nos jornais sindicais de uma maneira muito objetiva.

Moradora do Complexo de Favelas da Maré, no Rio, Renata criticou a presença do Exército lá durante a preparação dos megaeventos que a cidade recebeu e avaliou que a juventude da favela hoje é movida por um desejo de liberdade de quem não quer se submeter nem à opressão do Estado, nem à opressão do tráfico. É essa mesma juventude que tem buscado formas de se expressar por meio de coletivos de comunicação e de cultura que utilizam uma linguagem própria para debater os temas que afetam seu cotidiano. Um exemplo é o coletivo Na Favela, da Maré, que produz vídeos independentes que são veiculados na rua retratando e criticando a militarização. Uma produção desse grupo, exibida durante o debate, é o filme “Quem matou Gilberto?” ( https://www.youtube.com/watch?v=nWP9qAlASGs).

Outro exemplo é o Maré Vive, coletivo que utiliza as redes sociais para informar os moradores da maré sobre os mais diversos assuntos, produzido por eles mesmos. “O Maré Vive tem hoje mais de 100 mil seguidores e pauta concretamente a mídia burguesa. Esses coletivos põem em cheque a apuração que essa mídia diz que faz”, acrescentou. Segundo ela, o que está acontecendo hoje nas favelas em que moradores estão conseguindo veicular seus discursos é uma revolução molecular. Renata citou um trecho do livro Diário de Bitita, de Carolina Maria de Jesus, em que a escritora questiona se o baile seria algo indispensável na vida dos homens como gancho para comentar sobre uma manifestação cultural fundamental nas favelas: o baile funk. Para Renata, “o baile funk é um momento de felicidade e a felicidade, quando é uma prática coletiva, ela é, por essência, subversiva”.

Favela se comunica

A jornalista Tatiana Lima, que hoje faz doutorado em Comunicação na Universidade Federal Fluminense, emocionou a plateia ao contar sua trajetória, permeada pela vivência em favelas da capital fluminense na infância, por perdas decorrentes da violência e, também, pelos desafios que enfrentou para se tornar jornalista, profissão desejada desde muito cedo. Hoje Tatiana pesquisa a disputa de narrativas do cotidiano e da cidade do Rio a partir de coletivos de comunicação de favelas, especialmente do Complexo do Alemão. Ela vê o Alemão como um espaço potente de comunicação e todos os moradores como comunicadores.

“Uma dimensão que estou trabalhando na pesquisa é essa: a de que a favela também se comunica. Mas a comunicação e a cultura na favela não necessariamente estão nos lugares hegemônicos. A favela é descolonial nos modos de produção e de ser. Os muros são verdadeiras plataformas de comunicação e a favela vai contando o que ela está passando e seu modo ser a partir dos muros, tanto por dizeres deixados neles, como por suas marcas”, explicou, mostrando fotografias de muros com palavras de protesto e, também, por exemplo, marcas de tiros.

Tatiana ressaltou que, ao contrário do que muitos pensam, os moradores de favelas não estão alienados. “As pessoas se reconhecem como trabalhador e, inclusive, usam sabiamente essa identidade para se defender do Estado”, opinou. Sobre a necessidade de unificação da esquerda respeitando sua pluralidade, surgida também em mesas anteriores, e a impressão falsa muitas vezes presente no senso comum de que os moradores de favelas são despolitizados ela afirmou que, se só se pode ser bom repórter tendo escuta, só se pode realizar formação de base com escuta também. “Quando a gente fala de periferia, de classe trabalhadora e de classe pobre, a gente tem que parar de falar um pouco e escutar mais”, opinou.

Comunicação e cultura popular na periferia de Juiz de Fora

Mais uma vez presenta como palestrante no curso do NPC, a mineira Adenilde Petrina, filósofa, professora de História, militante de esquerda e do movimento negro também sensibilizou a plateia em sua fala. Com a simplicidade de quem está batendo papo durante um café da tarde e, ao mesmo tempo, a força de quem trabalha durante toda a vida para construir um mundo justo e igualitário, Adenilde falou sobre sua trajetória de militância, iniciada ainda na década de 1970 com o Teatro do Oprimido, em Juiz de Fora, passando pela construção do jornal “Nós Todos” e pela experiência marcante com a rádio comunitária Mega FM.

O grupo que atuava na rádio, que ficava na zona leste do município mineiro e foi fechada pela Polícia Federal em 2007, mantinha uma espécie de grupo de estudos para que, somado à experiência de vida, o conhecimento extraído dos livros pudesse ser ampliado e chegasse a mais pessoas. Entre as leituras estavam Os Escritos Políticos, de Antonio Gramsci, e Os Condenados da Terra, de Franz Fanon. “A gente foi se construindo e crescendo intelectualmente à medida que trabalhava na rádio”, lembra. Adenilde avalia que quem tem a informação tem o controle, não deixando para o outro brechas para pensar e se expressar. “Por isso a gente pensa em meios de comunicação popular. A rádio comunitária Mega FM era uma rádio onde todo mundo falava o que queria, mas todo mundo estudava para falar. Havia programas de várias tendências e vertentes para que as pessoas pudessem ter acesso a muitas informações e pudessem e escolher. Não queríamos controlar o que as pessoas deveriam ouvir ou saber, mas sim oferecer oportunidades de cada um escolher aquilo que quisesse saber”, explicou. Além do estudo, outra característica que Adenilde ressalta como fundamental da comunicação feita pela rádio era o compromisso com a realidade das comunidades onde a programação conseguia chegar. “A gente não ia comunicar, mas sim partilhar informações para discutir”, recorda.

Segundo ela, os meios de comunicação populares ajudam a democratizar a mídia e a sociedade: “O que existe hoje é uma fala da elite. A mídia é braço direito de uma elite burra e antiquada que quer a gente eternamente no fundão da fábrica e calados”, argumentou. Lembrando uma fala de Vito Giannotti, coordenador do NPC, costumava fazer, ela acrescentou que um movimento social sem mídia popular é um exército sem armas.

Mesmo após o processo e até mesmo a condenação da direção da rádio comunitária Mega FM, o grupo que se organizava em torno dela continuou com vontade de fazer uma comunicação que atendesse aos interesses e demandas das pessoas das comunidades. Sua proximidade com a juventude negra e periférica de Juiz de Fora fez com que organizassem, por meio do coletivo Vozes da Rua, o Agosto Negro, mês em que realizam atividades como rodas de conversa e intervenções culturais sobre racismo. Em 2017, o tema foi “Opressão, Linguagem e Ação”, tendo como referência o texto “A transformação do silêncio em linguagem e ação” da poeta e ativista estadunidense Audre Lorde. A poesia também está presente na vida de Adenilde e da juventude periférica de Juiz de Fora através do Slam de Perifa, que ela fez questão de apresentar ao público do curso do NPC. De acordo com Adenilde, a poesia é uma força poderosíssima o Coletivo Vozes da Rua, do qual ela faze parte, está descobrindo. “A poesia ressignifica as coisas: sua rua, seu povo, sua luta. É uma forma poderosa de comunicação porque trabalha com sentimento, é arte”, concluiu.

Protagonismo negro e periférico na esquerda

Também militante de esquerda e do movimento negro desde muito novo, Douglas Belchior reconheceu que hoje há, principalmente entre a juventude negra periférica, uma grande rejeição à forma de organização política tradicional, sobretudo aos partidos. Mesmo tendo uma história de militância partidária, inicialmente no PT e, hoje, no PSOL, ele avalia que essa rejeição pode ser combustível para mudanças. “A falta de paciência e a radicalidade são necessárias para a revolução. Estamos vivendo um momento em que a galera está impaciente, no nosso canto aqui, no nosso espaço. Mas temos motivos para estar impacientes!”, apontou.

Além de ter a escravidão institucionalizada no país em mais de três quartos de sua história, o povo brasileiro foi sempre dominado por uma elite branca e racista, conhecendo muito pouco sobre a escravidão no próprio país. “A gente não estudou, não conheceu, não sentiu a nossa escravidão e o que ela significou e quanto dela permanece em nós”, avaliou. Ele falou da dificuldade de ter relatos e acesso a bens culturais sobre escravidão no Brasil. “Nossa referencia massiva é a escravidão nos EUA. Nosso povo chora com os filmes americanos. Nós conhecemos mais a escravidão americana”, observou.

Outra questão trazida por ele é a insistência, inclusive na esquerda, de só permitir aos homens brancos que exerçam cargos de liderança e direção. “Nós teimamos em ignorar o que é óbvio: a potência da organização política das mulheres e dos negros”, criticou. Negro Belchior, como também é conhecido, avalia que, após o campo progressista e popular ter sido hegemonizado pelo petismo nos últimos 30 anos, atualmente estamos em um momento de reorganização que deve levar em contato o protagonismo dos negros.

Raphael Calazans, que encerrou a mesa, passou por vários dos assuntos tratados pelos companheiros. Segundo ele, o curso do NPC é uma ótima oportunidade para colocar o dedo na ferida e fazer uma autocrítica sobre o posicionamento da esquerda com relação aos negros e moradores de favelas. Citando a música “Dedo na ferida” (https://www.youtube.com/watch?v=QdvYAjQYdIs), gravada por Emicida, Calazans apontou que a esquerda precisa se repensar e redescobrir os caminhos para chegar à construção de outra realidade.

“Como pensar a vida e a cultura em um calendário em que de 365 dias você tem 305 de tiroteio?”, questionou, se referindo à realidade do Complexo do Alemão, onde mora. De acordo com Calazans, só de pensar nisso fica claro que a luta de classes só tem sentido na favela se passar pela questão de raça. Assim como Renata Souza, ele vê a festa na favela como algo altamente revolucionário. Por outro lado, concordou com Tatiana Lima ao afirmar que formação política se faz com escuta e não “dando voz”.