Por Sheila Jacob
A música “Alvará”, de MC Bobô, traz a voz de um preso que em um mês estará em liberdade e pergunta como está a “vida lá fora”. A letra fica ainda mais emocionante na voz fina e firme de Paulo Israel, o MC Papá do Bonde da Cultura. Foi com essa bela composição que teve início a última mesa do segundo dia do Curso Anual do NPC, sobre o “discurso do medo na mídia como controle social”. O delegado Orlando Zaccone, a professora Daniele Brasiliense (UFF) e a psicóloga Cecília Coimbra, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, abordaram como os meios de comunicação determinam quem são os criminosos.
Segundo Orlando Zaccone, a criminalização é o ponto de partida para entender o fenômeno do medo na mídia. “A criminologia rompe com a ideia de crime como natural ou como ente jurídico. A criminalização é um processo político: constrói um ambiente social que define o que é crime e o que não é. O caráter político da construção do crime e do criminoso é fundamental para entender o processo que estamos vivendo”, afirmou. O delegado lançou uma provocação aos militantes sociais, lembrando que muitas vezes eles defendem o processo de criminalização do qual são vítimas. “Os movimentos sociais pedem criminalização, mas não querem ser criminalizados. É o caso de quem luta pela criminalização da homofobia, por exemplo. Com esse entendimento a gente acha que a polícia é boa para alguns, e não é boa para outros. Ou a cadeia é boa pra todo mundo, ou não é boa pra ninguém”, afirmou. Segundo ele, a construção das figuras do inimigo e do criminoso não tem volta, e o processo de criminalização por que passam os movimentos sociais e os movimentos de rua é o mesmo que historicamente se volta contra a periferia e as classes populares no Rio. “Não podemos dar asas a um poder punitivo que só vai crescer e, sendo legitimado, pode se voltar contra os movimentos a qualquer momento”, destacou.
“A pacificação esconde o massacre das classes populares para manter a ordem”
Em relação à pacificação, Zaccone disse que “esse termo deveria nos arrepiar”. Isso porque, segundo ele, na história do Brasil o que é chamado de “pacificação” é a repactuação da ordem pelas elites para continuarem no poder, exterminando através de massacres as classes populares. Em relação ao caso Amarildo, ele lembrou que a criminalização de certos grupos implica na perda de cidadania e, consequentemente, dos direitos humanos. “Eu achava muito esquisita a aproximação do Amarildo ao tráfico, porque nessa concepção o traficante não tem direito à vida. Sumir com ele é solução, não é problema”, destacou.
Ele disse estar estudando os autos de resistência, que ocorrem em números absurdos. “A Anistia Internacional levantou em 2011 todas as mortes produzidas pelos estados que têm pena de morte. Todos esses países, exceto a China, resultaram em 666 execuções no mundo. Só no Rio e em São Paulo, no mesmo ano, foram mortas 961 pessoas a partir de ações policiais. Isso em um país que teoricamente proíbe a pena de morte”, observou. Ele também destacou que mais de 90% dos autos de resistência são arquivados em menos de três anos, o que legitima aqueles assassinatos. “Aqui não se constrói o que é crime, mas também o que não é. A exceção começa nas delegacias e é feita nos tribunais no Brasil, pois considera-se que existem vidas matáveis no Estado brasileiro”, pontuou.
“A mídia se sente autorizada a dizer o que é permitido e o que deve ser condenado”
A professora Danielle Brasiliense, da UFF, é autora do livro Candelária e as memórias narrativas de O Globo. “O que me interessa é entender as narrativas sobre as entidades criminosas”, explicou, lembrando que nos meios de comunicação existe um discurso do “outro”, de sujeitos diferentes, estranhos. “Existe um discurso do criminoso e um discurso da vítima, como foi o caso do João Hélio. A mídia se sente autorizada a dizer o que é permitido e o que deve ser condenado. Por exemplo: a diminuição da maioridade penal, a campanha do desarmamento etc”, pontuou. Há casos, segundo ela, em que a violência é aplaudida, como o do menino australiano Heynes, que reagiu de forma violenta ao bullying. Seu ato de violência foi aplaudido, como uma obrigação de restaurar sua honra. Para quem não conhece o caso, basta acessar aqui.
Brasilliense também falou sobre a construção do monstruoso pelo discurso hegemônico; nessa categoria estão aqueles que ameaçam a ordem social. “A construção da monstruosidade se dá por uma cadeia ideológica. Quando identificado como monstro, o sujeito perde a voz. O discurso da contra-hegemonia não é ouvido. Sua posição é dada, é construída, como se a gente lesse um romance policial do século XIX”, explicou. “Os discursos sobre os sujeitos criminosos precisam ser questionados, pois reduzem as contradições e as complexidades históricas e ideológicas”, concluiu.
“Ao contrário do que faz crer a mídia hegemônica, não existem essências”
A fundadora e vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM-RJ), Cecília Coimbra, lembrou que para entender a questão do crime é importante lembrar que qualquer sujeito que está no mundo não tem essência. “Segundo Foucault, os objetos e os sujeitos que estão no mundo são construções sócio históricas, construções das nossas práticas sociais. O tempo todo estamos produzindo a vitima, o herói, o vilão, o criminoso… E a mídia hegemônica participa na produção desses esquemas dominantes de significação e interpretação das coisas. Sempre divide o mundo entre o bem e o mal e ignorando a complexidade e pluralidade”, ressaltou.
Ela elencou três efeitos que os meios de comunicação tradicionais produzem. O primeiro é a produção de verdades, sempre a partir de falas autorizadas, os “discursos da verdade” normalmente proferidos por especialistas. O segundo é a criação de bandidos e vilões, naturalizando e determinando quem são as vítimas e quem são os criminosos. Por fim, ela destaca a produção de pânico, terror e medo para justificar o aumento do aparato repressivo e dos mecanismos de punição. “A subjetividade paranoica vai sendo produzida cotidianamente nas pequenas coisas e nos meios de comunicação. Naturalmente aplaudimos cada vez mais a polícia nas ruas, leis mais duras… Essa produção do pânico justifica qualquer coisa”, afirmou. Um desafio para os meios alternativos é, segundo ela, inverter o que os meios de comunicação estão produzindo. E finalizou com os belos versos de Bertolt Brecht:
Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.
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