por Ariano Suassuna
(
Folha de São Paulo, de 9 de fevereiro de 1999)

EM 23 DE JUNHO DE 1963, quando João Câmara era ainda um jovem pintor quase desconhecido, publiquei, no Recife, um artigo, no qual falava da série de torsos humanos que ele então empreendia: “Torsos violentos e contorcidos, raiados de sangue; torsos que clamam pela parede de afresco e pelo assunto profético”, como escrevi então, achando que, por sua força, João Câmara, dentro de pouco tempo, iria se encaminhar para uma pintura épica, de grandes dimensões.

Dois anos depois, estava relendo “Os Sertões”; e, ao chegar àquele trecho no qual Euclides da Cunha encontra, mumificados, os corpos de soldados e oficiais mortos pelos guerrilheiros de Canudos, parei a leitura, mais uma vez impressionado pela terrível beleza da cena. Um deles morrera com seu cavalo; e, montado ainda, ali permaneciam os dois, ressecados, entre pedras e cactos espinhosos, pelo ardente sol sertanejo.Ao chegar aí, comecei a achar que a pintura de João Câmara tinha alguma coisa a ver com Euclides da Cunha. E, na primeira ocasião em que nos encontramos, sugeri que ele recriasse plasticamente algumas daquelas cenas, na minha opinião adequadas à garra de seus quadros. 

Amigavelmente, Câmara discordou; mas, anos depois, nas suas épicas “Cenas da Vida Brasileira”, realizou, a seu modo, algo parecido com o que eu imaginara.

Conto este fato para comentar a versão que, sobre ele, o jornalista Carlos Beiarg apresentou na revista “Veja” da semana passada. Na matéria (e como se tal inverdade fosse um insulto), chama-me de “comunista”. E escreve: “Em 1965, no Recife, João Câmara, então um pintor em início de carreira, deparou com o escritor Ariano Suassuna, que já se tornara um autor reconhecido com obras como a peça Auto da Compadecida e o romance A Pedra do Reino… O comunista Suassuna, que conhecia os trabalhos de Câmara, cheios de crítica social irreverente, resolveu enquadrar o pintor na linha justa: Se você fizer só anarquia, não vai sobrar nada de sua arte”.Afirma ainda Beiarg que Câmara, criticando minha gestão como secretário da Cultura de Pernambuco, teria dito: “O escritor privilegiou a cultura popular, mas deixou de lado outros tipos de arte”. E conclui por afirmar que Câmara, “devolvendo a crítica recebida 30 anos atrás”, teria declarado: “Rapaz, acho que um projeto nacionalista para a cultura não é exatamente o que precisamos”. 

Na carta atenciosa e amiga que me enviou sobre a matéria da “Veja”, João Câmara relembra nosso encontro de 1965 e a sugestão que lhe fiz sobre “uma pintura épica, algo próximo da exaltação visual dOs Sertões. E comenta: “De modo algum sua colocação me afrontou ou me indispôs contra os princípios artísticos que você sempre defendeu, exerceu e aplicou, como pessoa e como artista… Ao falar sobre sua gestão na Secretaria da Cultura, realcei o fato de que era meritório e necessário apoiar, como você o fez, a cultura popular. Não opus a esta colocação qualquer referência a nacionalismo ou outro clichê. Estou ciente da sua grandeza e do seu sentimento amigo para entender que o que está estampado na revista não é minha opinião sobre o homem que respeito, admiro e quero bem”.

De modo que, com este artigo, pretendo apenas dizer a Carlos Graieb que, se passei a chamá-lo de Beiarg, foi para ver se ele descobre como isso é feio; e se, assim, deixa o péssimo hábito de escrever a verdade ao
contrário.