[Por Alexandre Haubrich – Jornalismo B] As mudanças sociais positivas nunca são acompanhadas em igual ritmo por todos os setores da sociedade em transformação. Faz parte da dinâmica que alguns setores sejam mais atrasados, ou por um nível mais elevado de alienação ou por apego reacionário às relações anteriormente estabelecidas. No caso da sociedade brasileira, com o modelo de comunicação tal como é, a mídia dominante é um desses setores constantemente aferrados ao que já começa a ser transformado e superado. O faz por um ideário conservador que impregna sua construção e por sua própria natureza ligada ideológica e financeiramente às velhas oligarquias.

Nestas vésperas dos 50 anos do golpe midiático-civil-militar que derrubou o presidente João Goulart, Folha de S. Paulo e Estadão publicaram editoriais que corroboram essa prática reacionária. O editorial “1964″, da Folha, foi publicado no domingo, 30. No Estadão, “Meio século depois” ocupou a edição desta segunda, 31.

O texto da Folha abre criticando a violência da Ditadura, mas em seguida chega a argumentos que, se não procuram justificá-la, atuam para relativizá-la. São dois parágrafos falando dessa violência. Depois, três justificando-a através do argumento de que existia um “feroz confronto entre dois modelos de sociedade – o socialismo revolucionário e a economia de mercado”. São três parágrafos em que se procura equilibrar as ações de um lado e outro, ainda que ao fim a Folha admita que “a maior parcela de culpa” cabe aos militares. Iguala, porém, o ataque à democracia partido dos golpistas com as reformas que Jango pretendia implantar: “parte da esquerda forçou os limites da legalidade na urgência de realizar, no começo dos anos 60, reformas que tinham muito de demagógicas”. Afirma ainda que os militantes que pegaram em armas contra a Ditadura estavam “decididos a instalar, precisamente como eram acusados pelos adversários, uma ditadura comunista no país”. Quer dizer, a Folha adota ferozmente o discurso dos velhos golpistas – dos quais fez parte desde o início.

Em seguida, o editorial volta a defender a Ditadura: “isso não significa que todas as críticas à ditadura tenham fundamento”. Passa, então, a louvar a política econômica dos militares, e por oito parágrafos segue nesse tema, alternando rápidas críticas com profundos elogios. Pinta um belo quadro da economia sem falar, por exemplo, do enorme endividamento a que a Ditadura levou o Brasil e colocando um peso menor no avanço das desigualdades sociais naquele período.

Por fim, nos últimos três parágrafos, a Folha procura não desculpar-se, mas justificar o apoio que deu ao golpe e ao governo ditatorial. Ao mesmo tempo, coloca na carona os próprios ditadores e seus agentes, coloca na carona todos os assassinos e torturadores que agiram em nome de um Estado sequestrado. Diz assim: “É fácil, até pusilânime, porém, condenar agora os responsáveis pelas opções daqueles tempos, exercidas em condições tão mais adversas e angustiosas que as atuais. Agiram como lhes pareceu melhor ou inevitável naquelas circunstâncias”.

No Estadão, a defesa do golpe foi ainda mais aberta. Nenhuma vez, em todo o texto de 4229 caracteres, quase 700 palavras, é usado o vocábulo “ditadura”. “Golpe” também não aparece sequer uma vez. Na primeira frase, o Estadão fala em “movimento civil-militar de 31 de março de 1964″. Já em seu segundo parágrafo, o editorial procura construir um revisionismo histórico que ignora os fatos concretos. Afirma que “O governo do presidente João Goulart teve sua origem numa crise – a da renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961 – e em crise viveu até ser deposto”, abandonando a narrativa dos fatos que dá conta de que o governo de Jango começou, sim, com uma eleição, vencida por ele para o cargo de vice-presidente – e natural substituto do presidente em caso de renúncia. Em seguida o jornal insiste na falsificação da História e das regras que conduziam aquele momento histórico: “Reformas de cunho socialista, embora ele não tivesse mandato popular para isso, pois foi eleito vice – e não em sua chapa, como então permitia a lei eleitoral – de um presidente nitidamente conservador”. Na verdade, como vice-presidente eleito e substituto do presidente que havia renunciado, Jango tinha “mandato popular”, sim. E sobre o “cunho socialista” de suas reformas há discussões infindáveis, e a afirmativa intransigente do Estadão usa a técnica de manipulação da tomada de juízos de valor como verdades absolutas.

Na sequência o editorial enaltece a Marcha da Família com Deus pela Liberdade” e procura diminuir a importância dos atos de apoiadores do presidente democraticamente eleito. Adota também o mesmo discurso que adotou em 1964 e que foi construído pelos setores golpistas: o do “perigo comunista”. O Estadão agarra-se ao terrorismo discursivo.

Embora admita que “o mesmo não aconteceu na política”, o Estadão tece loas ao primeiro Ato Institucional, a Castelo Branco e ao que chama de “um bem-sucedido trabalho de saneamento das finanças e reorganização político-administrativa do País. Na economia e na modernização da administração, o regime obteve inegáveis êxitos”. E volta a justificar o golpe, que chama novamente de “movimento”: “O AI-2 marca o afastamento do Estado do movimento. A sua componente civil foi definhando e ele se tornou essencialmente militar”. Quer dizer, para o Estadão os civis golpistas estavam certos. O problema estava em atitudes dos militares.

Com seus esdrúxulos editoriais, Folha e Estadão reafirmam-se golpistas e abraçam-se às viúvas do golpe e da Ditadura – em que pese a crítica aos “exageros” do “regime”. Justificam o golpe e justificam seu apoio a ele, demonstrando desapreço pela democracia e falsificando a História. Lutar para que aquelas duas décadas não se repitam e para que seus resquícios parem de nos atormentar é também lutar contra o discurso que procura naturalizar e justificar em parte ou em sua totalidade as atrocidades cometidas. No cinquentenário do golpe, dois dos maiores jornais do país prestaram um serviço à frágil e limitada democracia brasileira e mostraram que pouco tem a oferecer a uma sociedade que possa pretender avançar.