Por Vito Giannotti
NO DIA 3 deste mês, morreu a jornalista e ex-deputada do PT Heloneida Studart. Ela nasceu no Ceará em 1932, ano em que as mulheres brasileiras ganharam o direito a voto. Ao final do seu velório, na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, uma das canções entoadas pelos amigos foi uma adaptação de “Ô abre alas”, de Chiquinha Gonzaga. A letra improvisada rendia uma homenagem à atividade de Heloneida como escritora feminista: “Ô abre alas, que eu quero passar / Sou feminista, não posso negar / Sou feminista, não posso negar”.
O Portal da Associação Brasileira de Imprensa deu um grande destaque à sua morte, e assim descreveu a emoção da despedida: “À vigília compareceram muitos trabalhadores e trabalhadoras com os quais Heloneida trabalhou por uma visão feminista, socialista e libertária. Também estiveram presentes colegas parlamentares, jornalistas e, sobretudo, militantes do movimento feminista, que discursaram diante de seu esquife cantaram “Maria Maria”.
Mulher brinquedo
Seus livros formaram uma geração de lutadores. Jornalista, escritora e teatróloga, Heloneida destacou-se por seus escritos sobre a libertação da mulher. Ao final dos anos 1960, sobretudo após 1968, o Brasil vivia a onda mundial de contestação dos costumes e o auge da luta de libertação das mulheres. No mundo inteiro, a luta contra o machismo em todas as suas manifestações, da casa ao local de trabalho, se misturava à luta por uma sociedade justa e socialista.
Seu primeiro livreto foi Mulher Brinquedo do Homem, de 1971. O título já dizia a que vinha: denunciava a sociedade machista dos anos de 1970, que via a mulher como um objeto para a diversão do macho. Em 1975, publicou, pela editora Vozes, Mulher objeto de cama e mesa, uma versão atualizada do primeiro livreto, com a mesma visão de igualdade entre homens e mulheres e da necessidade de superação do machismo. Desse último, foram publicados mais de 220 mil exemplares. Foi lido e usado em escolas, fábricas e escritórios. Em muitas reuniões era lido e discutido coletivamente. Despertou e formou milhares de jovens, homens e mulheres, e pessoas de todas as idades.
Suas idéias centrais eram as do movimento feminista daquela década que foi declarada pela ONU, de 1975 a 1985, como a década da mulher. Foram anos de grandes mobilizações das mulheres, no mundo e também no Brasil. A luta não terminou Há muita gente que acha que a luta da mulher saiu de moda. Aliás, dizem que a mulher “chegou lá”: é respeitada na sociedade, em casa e no trabalho. Hoje, teria os mesmos direitos dos homens, por isso a luta feminista seria anacrônica. Bonito, se fosse verdade, mas sabemos que é pura ilusão. Quem ainda aparece de olho roxo é a mulher, e não o homem.
Para cair na realidade, é só passar em qualquer banca de jornal para ver que a mulher ainda é tratada como carne de açougue. Centenas de revistas mostram-nas expondo “seus dotes”, ao lado de revistas sobre churrascos e restaurantes que ostentam picanhas no espeto. Carne igualzinha à das revistas femininas colocadas, sem querer, uma ao lado das outras. Igualdade? Procuremos uma mulher no meio de mil fotos que aparecem no jornal Valor, típica publicação para executivos. De cada mil machos, é capaz que apareça até uma mulher. Ou, é só contar quantas mulheres viajam, nos vôos matutinos da ponte aérea Rio-São Paulo e vice-versa. É só olhar a machista Veja naquelas páginas nas quais são colocadas notícias curtíssimas ou frases em destaque. De todos os homens que aparecem nas fotos, é mostrada a cara, falam alguma coisa e, detalhe, estão vestidos. Mas, 99,99% das mulheres que aparecem mostram tudo, menos a cabeça. Pra que a mulher precisa cabeça? É só mostrar os tais dotes! Claro que já foi pior! Mas isso não é consolo.
Heloneida e eu estávamos planejando fazer uma edição atualizada do livreto Mulher objeto de cama e mesa. Iria falar de mil coisas de hoje. Do Big Brother e seus valores, dos programas à la Ana Maria Braga, Gugu, Faustão ou da atualíssima violência contra as mulheres (…) Lei Maria da Penha etc., etc. Iríamos falar das mulheres de todas as novelas da Globo, que só falam de um assunto: homem, marido, namorado, amante, caso, qualquer coisa, mas é daquilo. E dessas mulheres das novelas da Globo que dificilmente passam mais de meia hora sem chorar.
Haveria muita coisa a escrever sobre a necessidade de continuar a luta das mulheres. Ela não teve tempo. Outros e outras o farão. Por enquanto, só nos resta procurar nos sebos ou em estantes empoeiradas de amigos seu livreto Mulher objeto de cama e mesa. Vale a pena lê-lo e relê-lo. A morte da Heloneida nos relembra que o caminho é longo, muitíssimo longo, e “a luta continua”.
Nosso país vivia debaixo de uma ditadura assassina que prendia, torturava, matava e exilava milhares de pessoas que lutavam pela liberdade e por uma sociedade justa. Essa situação de ditadura não impediu que as mulheres se organizassem e lutassem pelos seus direitos. Grandes congressos, com até 4 mil pessoas se realizaram, a partir de 1975, em São Paulo, Rio e em vários outros Estados. Nesses, as bandeiras levantadas diziam respeito aos direitos, à igualdade e à participação das mulheres na sociedade.