Gentrificação: Vale do Anhangabaú na mira do neoliberalismo. Região onde vive mais da metade da população de rua de São Paulo vira alvo do neoliberalismo e da busca por lucros

Por Camila Araújo – NPC

A jornalista Sabrina Duran falou sobre seu trabalho investigativo no 21º Curso Anual do NPC

A jornalista Sabrina Duran falou sobre seu trabalho investigativo no 21º Curso Anual do NPC

Durante um ano de investigação, a jornalista Sabrina Duran preparou um dossiê sobre o projeto de requalificação do Vale do Anhangabaú, região que divide os centros  Velho e Novo da cidade de São Paulo. O projeto feito por meio da parceria entre a prefeitura de São Paulo, o banco Itaú e um escritório dinamarquês. A partir de dados apurados em minuciosa pesquisa, a jornalista mostra que o que está por trás das parcerias público-privadas é o projeto neoliberal de fazer com que o Estado trabalhe para o grande capital, gerando lucro para as empresas.

 

Como começou o processo de investigação do projeto no Vale do Anhangabaú?

Tudo começou no final de 2013. Eu assisti a uma apresentação oficial da prefeitura sobre um novo projeto de requalificação desse espaço da cidade, que é o Vale do Anhangabaú. A cidade cresceu no entorno desse vale. Eu achei curioso porque esse projeto, comprado por um banco privado, no caso o banco Itaú, e encomendado por um escritório dinamarquês, previa uma série de amenidades e de transformações naquele espaço que para mim, pareciam não condizentes com a realidade social daquele espaço. Não que eu fosse contra o projeto em si – porque há projetos como esse em vários lugares do mundo e são muito bem aceitos –, mas naquele contexto social de muita desigualdade e segregação, muito provavelmente e fatalmente levaria a um processo de gentrificação.

Mais da metade da população de rua de São Paulo vive naquela região. Então, quando vi aquele projeto, eu achei no mínimo estranho. Pensei em quais os termos e acordos foram feitos para possibilitar que um projeto desse tipo fosse aceito socialmente – se é que foram. Nesse momento, então, eu comecei a investigar e a buscar documentos públicos que falassem desse projeto, das tratativas entre Itaú, prefeitura e escritório dinamarquês para entender o que estava acontecendo ali.

Por que priorizou os documentos públicos como método de investigação?

Eu entrevistei muita gente. Aproximadamente 30 pessoas entre população vulnerável, agentes do poder público, os arquitetos que fizeram o projeto, o banco Itaú etc. Então, eu falei com todos esses grupos para tentar entender qual era o cenário que se desenhava ali. Acontece que qualquer um pode falar qualquer coisa. E aí eu pensei que precisaria de documentos oficiais, não para provar o que as pessoas estavam dizendo, mas para ter uma profundidade maior dos termos que estavam baseando esse projeto. Por exemplo, eu perguntei a um gestor público quando eles começaram as negociações com o Itaú e com o escritório dinamarquês, e ele respondeu que foi em agosto de 2013. Quando perguntei para a arquiteta, ela disse que começaram em março de 2013. Aí você já tem duas informações que não batem. Com os documentos, eu constatei que eles haviam iniciado as negociações, pelo menos, em março de 2013.

Eu vou pressupor que o gestor se confundiu, pois o que ele me revelava, era que todas as tratativas já estavam feitas, o projeto estava pronto. Quando eles começam a fazer os workshops públicos, em setembro de 2013, em março já estava tudo sendo dito, tudo certo. Eles precisavam fazer um processo de participação pública para poder legitimar, uma vez que o Estatuto da Cidade não permite que um projeto desse porte seja feito sem participação pública, ele pode ser embargado. O que a prefeitura faz? Faz um “bem bolado”, chama meia dúzia de pessoas, que fecham com eles, eles apresentam as propostas, todo mundo diz sim e está feita a participação pública.

Os documentos são fundamentais se você quer entender as minúcias das tratativas, que estão em datas, termos específicos, em lugares muito pequenos – e que não vão aparecer nas falas públicas. E são essas minúcias que revelam quais são as forças que atuam sobre aquela área pública.

Não abro mão das entrevistas com as fontes, mas as complemento e dou profundidade com os documentos públicos, principalmente.

E quais foram seus principais desafios?

A dificuldade de acesso aos documentos públicos é, de longe, o principal desafio. Num nível pessoal, isso afetava muito a minha rotina de trabalho. O que eu poderia fazer em seis meses, eu fiz em um ano. Fora o planejamento financeiro, eu tinha dinheiro para pesquisar por seis meses, não um ano. Já pensando no coletivo, imagina como a falta de informação não afeta a vida das pessoas que moram ali, comoa s populações em situação de rua, que não tem a mínima noção do que está acontecendo e vão ser as primeiras a serem afetadas.

Outra dificuldade foi de análise, de juntar todos os documentos e montar um quebra-cabeça e conectar os dados. Você sabe que tem alguma coisa ali, mas até descobrir que é uma data, um valor, demora. Eu tive algumas respostas, mas outras não. Qual é o interesse do Itaú naquela área? Tem um milhão de hipóteses. Dificilmente você vai conseguir ouvir do deles a resposta “então, é que a gente quer dominar e controlar tudo”. Você pode supor isso. Os documentos e as entrevistas te dão um quadro, uma fotografia daquele momento, que se relaciona com um momento histórico. E nesse ponto, a pesquisa acadêmica me ajudou muito. Por exemplo, como entender o ideário neoliberal, o que foi esse projeto político, financeiro e econômico do neoliberalismo e das instituições financeiras transnacionais de forçar uma privatização massiva, desregulamentação e precarização do trabalho para poder ingerir sobre as cidades. Foi preciso também eu entender esse modelo de cidade-empresa, como diz Carlos Wainer, um sociólogo do Rio de Janeiro.  A cidade que é gerida para fornecer lucro. Como é que esse projeto do Itaú, no Vale do Anhangabaú se insere nesse contexto? Eu precisei buscar em muitas fontes. No site do trabalho tem as fontes bibliográficas que ajudam a entender tudo isso.

Outra grande dificuldade foi a pressão do poder público para que eu me calasse.

Você já foi ameaçada?

Fui ameaçada de processo, fui sondada por pessoas que tem ligações com o Itaú e com a prefeitura e que vieram me abordar “mas olha, me conta um pouco, eu estou achando essa coisa do Itaú muito estranha, quais são os planos deles, o que você sabe?”. Depois fui ver que dias antes dessa sondagem, essa pessoa tinha tido uma reunião de negócios com o prefeito e com o banco Itaú. Isso tudo está registrado. Recorri ao artigo 19, conversei com o pessoal de proteção a jornalistas e falaram “estão tentando te pressionar”. Porque eles não iam me matar, me dar um tiro, isso é um ônus político gigantesco, eu publiciso tudo o que acontece, todo mundo vai saber o que é. Então qual é o jeito de matar alguém sem matar? Dar um telefonema, ameaçar que gente de alto escalão pode processá-la. Essa foi uma dificuldade muito grande do ponto de vista pessoal, mas não vão me calar porque não é por mim. A prefeitura tem que entender que eu não estou indo contra o Hadad, mas contra o sistema, é esse processo que eu estou questionando e ponto. Se fosse PSDB, PT, qualquer partido, isso não me importa, não é minha intenção mostrar uma visão dualista do bem e do mal, o que eu quero é desvendar o que está por trás disso. Por que a cidade é como é, por que é construída assim? Se a gente soubesse como esses processos se dão, talvez a ação contra-hegemônica seria muito mais fácil, menos penosa.

O que você pode perceber a partir da negação do poder público ao seu acesso às informações?

O que eu percebi foi que, por meio das negativas, eles me mostraram todo o caminho que eu tinha que seguir para encontrar as informações que eram sensíveis.  Porque ao mesmo tempo que a gente acha que o poder público é esse ser onipotente, onisciente e tem uma série de esquemas para te ludibriar, ao mesmo tempo, ele é ingênuo. No limite, são irresponsáveis. Porque é óbvio que se eles me negam uma resposta que é simples – eu não estava pedindo a conta do secretário municipal de obras, mas a lista de presença – eles levantam um alerta pra mim. Se eu quisesse fotografar a lista de presença eu posso, porque é um documento público. Isso me fez questionar muitas vezes “por que estão me negando um documento como esse?”. Foi uma ingenuidade, e evidentemente, foi algo que a prefeitura não deveria ter feito, enquanto gestor público que deveria ser “transparente”.

A partir da sua investigação, o que, na sua opinião, está por trás dessa parceria público-privada? Como você analisa os interesses que estão em jogo nesse projeto no Vale do Anhangabaú?

O projeto neoliberal. Não necessariamente de diminuição do Estado, mas de apropriação dos instrumentos dele: terras, verba e espaço público. Um dos grandes argumentos da legitimação das parcerias público-privadas é que o Estado não tem dinheiro. Logo, é muito bom fazer uma parceria com grandes empreiteiras. Como por exemplo, as operações urbanas, em que você delimita uma área que vai passar por uma grande transformação urbana, vende potencial construtivo para as empresas (elas pagam pelo direito de construir além dos limites) e esse dinheiro é revertido para aquela área. É uma forma de recuperar os investimentos pelo poder público naquela área. Só que para uma empreiteira se interessar em comprar mais direitos de construir em uma área, ela vai buscar uma área que tem potencial de valorização. Aqui no Rio, por exemplo, uma empreiteira não vai querer construir um prédio de 30 andares em Belford Roxo. Se a prefeitura quiser fazer uma área de operação urbana nesse bairro, ela vai ter que colocar uma série de equipamentos ali antes, para atrair a atenção dessa empreiteira. E é isso que os governos e prefeituras fazem, abrem avenidas, constroem pontes, equipamentos culturais para valorizar uma região e atrair a atenção dessas empresas que querem aumentar seu lucro.

Em tese, na PPP, o dinheiro vem das empresas, e esse dinheiro entra para o poder público. Só que não. O poder público desembolsa dinheiro para atrair o privado, ou seja, é o privado quem faz mais dinheiro a partir do dinheiro público investido. Então, esse discurso de que o Estado está quebrado e por isso é preciso fazer uma parceria desse tipo, é uma falácia. Isso precisa ser desconstruído com dados. Existe uma série de estudos mostrando como as PPPs socializam os prejuízos e privatizam os lucros. Quem sai ganhando é o privado e quem paga tudo é o público.

Então o que está por trás disso tudo é esse projeto neoliberal de fazer com que o Estado trabalhe para o grande capital. O Itaú conseguiu se apropriar dos instrumentos de gestão, da verba pública, do espaço público e da legitimação pública.

Como os sindicatos, os movimentos sociais e os interessados em fazer uma comunicação transformadora podem se colocar diante desse tema?

Eu, como jornalista, vou sempre defender a necessidade de informação, de dados. É preciso buscar esses documentos que conseguem mostrar os meandros dessas negociações, desses projetos. Os dados são muito importantes, mas eles sozinhos não funcionam. É preciso conectar esses dados, buscar uma narrativa perpasse esses dados, entender o cenário, fazer a contextualização histórica e socializar essas informações. Talvez isso se encaixe mais na grande imprensa, mas na comunicação contra-hegemônica não tem essa de “furo” com dado público. O que um sabe deve compartilhar com todos. Muitas vezes a gente acha que uma reportagem é só um monte de dados atuais que você compilou. Não. Eles estão ali por algum motivo, por um momento histórico. E é preciso recuperá-lo para entender melhor o que está ali.