Por IHU On-Line

“Seria importante aprovar o Marco Civil de acordo com o relatório preparado pelo Deputado Alessandro Molon, sem modificações adicionais sobre o princípio da neutralidade da rede ou mesmo sobre a questão de localização forçada de dados pessoais”, diz o advogado.

 

marco-civilAguardando votação em regime de urgência na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei — PL do Marco Civil da Internet possui dois pontos polêmicos, que “ainda geram discussão entre os parlamentares e os atores envolvidos no debate: (i) a neutralidade da rede; e (ii) a privacidade dos dados pessoais de brasileiros”, avalia Carlos Affonso Pereira de Souza, em entrevista concedida à IHU On-Linepor e-mail.

Segundo ele, a preservação do princípio da neutralidade da rede “é fundamental para que se mantenha a natureza aberta da rede como conhecemos. Segundo esse princípio, não é dado às operadoras que fornecem o acesso à internet e trafegam os dados na rede discriminar esse tráfego com base em seu destino, origem ou conteúdo. No final das contas, a neutralidade da rede é uma proibição contra a discriminação dos dados que são trafegados de forma online”.

Na entrevista a seguir, Souza enfatiza que no PL ainda há uma “disputa teórica e política sobre os mecanismos de retirada de conteúdo da internet”. De acordo com ele, “o Marco Civil optou pela regra segundo a qual o provedor não seria responsabilizado pelo conteúdo postado por seu usuário, salvo se descumprir uma ordem judicial para a retirada desse conteúdo. Sendo assim, o provedor não seria responsabilizado caso não desse seguimento a uma simples notificação para retirada de conteúdo. Isso não quer dizer que o provedor não poderia tirar o conteúdo antes de uma ordem judicial, mas o fato de ele apenas poder ser responsabilizado após uma decisão judicial criaria um desestímulo a mecanismos de retirada expedita do conteúdo que podem implicar verdadeira censura”.

Carlos Affonso Pereira de Souza pontua que a preocupação do PL do Marco Civil é “evitar que questões subjetivas (como decidir se um comentário ofende a honra ou se uma imagem poderia ou não ser exibida) fossem decididas de forma automática, criando assim uma restrição importante ao discurso e à diversidade na internet”.

Carlos Affonso Pereira de Souza é doutor em Direito Civil pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro — UERJ e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade. Atualmente também leciona na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro — PUC-RJ.

Confira entrevista.

Foto: http://bit.ly/1gE14Pt

IHU On-Line – Quais os prós e contras do Projeto de Marco Civil da Internet (PL 2.126/2011), que está tramitando no Congresso Nacional?

Carlos Affonso Pereira de Souza – O Marco Civil é um projeto muito positivo e que coloca o Brasil na vanguarda da regulação da rede. Estamos acostumados a imaginar que o atraso de mais uma década que o Brasil experimentou para começar a editar leis sobre a internet teria sido algo prejudicial ao país, mas, vendo por outro lado, essa década propiciou que o Brasil aprendesse com os erros e com os acertos de outras legislações, com destaque para as experiências regulatórias europeias e norte-americanas.

Nesse sentido, o Marco Civil se coloca como uma lei que tem os direitos fundamentais como o seu norte, apontando para uma direção a princípio lógica de regulação da rede. Ele não pretende esgotar os assuntos e nem mesmo entrar em detalhes sobre temas controvertidos da regulação da rede, mas o Marco Civil serve como um guia interpretativo para os juízes que a cada dia se veem chamados a decidir sobre questões ligadas à internet, ao mesmo tempo em que coloca o Brasil em uma posição de destaque no cenário internacional por estar debatendo no Congresso uma lei que nasceu de um debate desenvolvido inicialmente na internet.

Por ter sido gerado a partir da primeira iniciativa de se promover um debate na rede que posteriormente seria convertida em projeto de lei, os mecanismos de identificação de posicionamentos, agrupamentos de opiniões e a forma de dialogar com as sugestões apresentadas para a própria redação do texto ainda foram bastante incipientes. Em processos de consulta na rede sobre outras leis, com destaque para o Código de Processo Civil e a Lei Geral de Dados Pessoais, esses processos foram sendo gradativamente aperfeiçoados. De toda forma, o saldo do Marco Civil é extremamente positivo e a sua aprovação é uma demanda que deveria ser acolhida pelo Congresso Nacional.

IHU On-Line – O texto original já foi alterado? Que pontos do texto têm gerado mais polêmica?

Carlos Affonso Pereira de Souza – Sim. Depois de recebido no Congresso Nacional como o Projeto de Lei nº 2.126/11, o texto passou por alterações promovidas pelo seu relator na Câmara Federal, o deputado Alessandro Molon.

O texto possui pelo menos dois pontos que ainda geram maior discussão entre os parlamentares e os atores envolvidos no debate: (i) a neutralidade da rede; e (ii) a privacidade dos dados pessoais de brasileiros.

Neutralidade

No que diz respeito à neutralidade da rede, é bom esclarecer que esse princípio pode não ser de conhecimento geral, mas a sua preservação é fundamental para que se mantenha a natureza aberta da rede como conhecemos. Segundo esse princípio, não é dado às operadoras que fornecem o acesso à internet e trafegam os dados na rede discriminar esse tráfego com base em seu destino, origem ou conteúdo. No final das contas, a neutralidade da rede é uma proibição contra a discriminação dos dados que são trafegados de forma online.

É claro que uma operadora poderia ofertar, por preços distintos, velocidades diferentes para navegação aos seus clientes e isso em nada afeta o princípio da neutralidade da rede. O ponto aqui é começar a se investigar o que está sendo transmitido e, a partir disso, degradar, acelerar ou simplesmente impedir a transmissão de dados.

Essa proibição tem fortes impactos concorrenciais já que as empresas que operam as formas de transmissão de dados na rede poderiam se valer desse expediente para prejudicar concorrentes, ou mesmo para degradar o serviço de usuários quando eles utilizam serviços que consomem muita banda (como já ocorre hoje com os downloads de arquivos torrents).

A conexão da neutralidade com a privacidade é direta, pois para discriminar o dado trafegado é necessário monitorar a transmissão, gerando assim, não raramente, uma possibilidade de coleta e de tratamento de dados com uma amplitude bastante perigosa para a tutela da privacidade e dos dados pessoais do usuário da rede.

Privacidade

Justamente sobre privacidade reside um segundo ponto de debate porque, após a revelação envolvendo os programas de espionagens do governo norte-americano, o governo brasileiro iniciou o debate sobre alterar o Marco Civil para fazer inserir em sua redação a obrigatoriedade de empresas que atuam no Brasil de manter os dados pessoais de brasileiros que utilizem os seus serviços em datacenters situados no Brasil.

Se por um lado essa medida teria o efeito benéfico de facilitar a obtenção de dados pessoais de brasileiros mediante requisição judicial e ainda incentivaria em certa medida o desenvolvimento de capacidades nacionais para o armazenamento de grandes volumes de dados, a sua implementação parece no mínimo problemática. É uma boa intenção implementada através de uma ferramenta que causará mais prejuízos do que benefícios. Primeiro porque será controvertido decidir quem é brasileiro e que por isso teria os seus dados armazenados no Brasil. Em segundo lugar, existe ainda dúvida sobre se a conexão à rede efetivamente partiu do Brasil, já que o internauta poderá utilizar mecanismos que tornam essa identificação mais difícil, como VPNs e mesmo navegadores como o TOR. Adicionalmente, essa exigência reforça uma tendência perigosa de “balcanização” da internet, gerando regras específicas e não interoperacionais entre vários países. Basta perguntar o que aconteceria se outros países exigissem o mesmo de empresas brasileiras operando no exterior. Tudo sem falar nos impactos negativos na inovação.

Por isso seria importante aprovar o Marco Civil de acordo com o relatório preparado pelo Deputado Alessandro Molon, sem modificações adicionais sobre o princípio da neutralidade da rede ou mesmo sobre a questão de localização forçada de dados pessoais que, como visto, não é o modo adequado para incrementar a proteção da privacidade de brasileiros.

IHU On-Line – Quais são as principais disputas teóricas e políticas em torno do Marco Civil da internet?

Carlos Affonso Pereira de Souza – Além dos temas sobre neutralidade da rede e privacidade acima comentados, existe uma disputa teórica e política sobre os mecanismos de retirada de conteúdo da internet.

Marco Civil optou pela regra segundo a qual o provedor não seria responsabilizado pelo conteúdo postado por seu usuário, salvo se descumprir uma ordem judicial para a retirada desse conteúdo. Sendo assim, o provedor não seria responsabilizado caso ele não desse seguimento a uma simples notificação para retirada de conteúdo. Isso não quer dizer que o provedor não poderia tirar o conteúdo antes de uma ordem judicial, mas o fato de ele apenas poder ser responsabilizado após uma decisão judicial criaria um desestímulo a mecanismos de retirada expedita do conteúdo que podem implicar verdadeira censura.

A questão não é simples, mas a preocupação que animou o Marco Civil foi evitar que questões subjetivas (como decidir se um comentário ofende a honra ou se uma imagem poderia ou não ser exibida) fossem decididas de forma automática, criando assim uma restrição importante ao discurso e à diversidade na internet. Por outro lado, questiona-se se esse sistema não prejudicaria a agilidade necessária para impedir que um conteúdo danoso continuasse a ser exibido.

Ainda polêmica foi a inclusão de um parágrafo segundo no artigo 15, que trata da responsabilização, que retira a aplicação do Marco Civil para os casos envolvendo direitos autorais. Se por um lado parece mesmo que o local ideal para se debater o regime de responsabilização e retirada de conteúdo é na reforma da Lei de Direitos Autorais, prevista para chegar no Congresso ainda este ano, a retirada das questões sobre direitos autorais do Marco Civil faz com que exista um regime diferenciado para esse tipo de infração de direitos.