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A mídia constrói simbolicamente a realidade

A mídia atua através de estratégias específicas de construção dessa realidade em um país onde no mínimo 80% da população se orienta pela TV aberta, que chega a 97% dos lares brasileiros. É uma televisão neoliberal, do capital, dessas famílias que tomaram conta do espectro.

Por Kátia Marko. Edição: Claudia Giannotti

BoletimNPC – A mídia constrói a realidade?

Pedrinho Guareschi – Nós vivemos, nos últimos 30-40 anos, numa sociedade um pouco diferente da sociedade antiga. A gente poderia dizer que antigamente a dimensão geográfica de uma sociedade tinha muita importância. Hoje em dia continua tendo, mas se construiu o que poderíamos chamar de segundo andar. Esse segundo andar é a realidade social construída fundamentalmente pelos meios de comunicação e que nos envolve por todos os lados. Ora, a construção simbólica da realidade é o que a mídia faz.

BoletimNPC – Como?

Pedrinho Guareschi – Através dos valores, dos conceitos, dos termos. A mídia privilegia esse espaço do andar superior. A mídia possui estratégias muito específicas de construção dessa realidade.

BoletimNPC – Que estratégias seriam essas?

Pedrinho Guareschi – Em primeiro lugar dizendo como as coisas são. A mídia não pergunta como as coisas chegaram a ser assim, ela simplesmente diz: “as coisas são assim”. Ela naturaliza todos os fenômenos sociais, que nós sabemos que são construções históricas. Assim, as mulheres são um pouco menos importantes que os homens, os ocidentais são mais inteligentes que os orientais. Se ela não for criticada, não for questionada, vai construir um mundo no qual a grande a maioria da população vai vivendo, se comportando, a partir desses valores. A gente compra a partir desses valores. A gente casa ou descasa a partir desses valores. A gente vota a partir desses valores. Nosso mundo social vai sendo prefigurado por essa construção social que a mídia faz.

BoletimNPC – Mesmo com o avanço das redes sociais, a maioria da população ainda se informa pela televisão?

Pedrinho Guareschi – Sim, essa é uma questão muito séria. Que ótimo que temos mídias sociais, mas entre 70 a 80% da população se orienta, se informa pela TV aberta. Ora, a TV aberta no caso brasileiro é um escândalo, porque ela possui donos, coisas que em outros países não é assim. Há sempre alguém que controla esses meios de comunicação eletrônicos que, como concessão, deveriam ter restrições muito sérias. Aqui no Brasil não, quem recebeu uma concessão, se julga dono. O mais engraçado é que eles naturalizaram isso. Fiz uma pesquisa entre alunos do fim do 2º grau e começo da universidade e 97% diziam que os meios de comunicação eletrônicos têm donos. Você vê a força que tem os próprios meios de comunicação em dizer quem são eles e de quem eles pertencem.

BoletimNPC – Uma vez você disse que o Brasil só vai ser democrático quando o presidente da Rede Globo for eleito

Pedrinho Guareschi   – A Rede Globo chega a 97% dos domicílios brasileiros. Enquanto apenas 93% têm geladeira, 97% têm televisão. Há lugares, no Brasil, nos quais só chega a Globo. Não quer dizer que só assistam a Globo, mas que só ela chega a determinados lugares. Isso lhe dá um poder enorme de penetração. Tem um artigo do Vanderlei Guilherme dos Santos no qual ele diz o que fazer com o sistema globo de comunicação é um dos mais difíceis problemas a solucionar pela futura democracia brasileira. A capacidade de fabricar super-heróis fajutos, triturar reputações e transmitir versões selecionadas e transfiguradas do que acontece no mundo, lhe dá um poder intimidante a que se foram submetendo o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. A referência aos três poderes constitucionais da República resume a extensão do controle que o Sistema Globo detém e exerce implacavelmente, hoje, sobre toda e qualquer organização ou cidadão brasileiro”. Não podemos dizer que uma nação é democrática enquanto ela tiver apenas uma voz.

O grande trabalho de grupos como o Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC) é refletir essa coisa muita séria que é a situação em que a Globo chegou, numa situação de decretar a honra, a vida, o valor positivo ou negativo das pessoas, de levantar alguém, de degradar alguém, e de se intitular da dona quase absoluta dessa realidade social.

BoletimNPC – Eduardo Galeano, no livro “De pernas pro ar: o mundo ao avesso” questiona a comunicação e a manipulação. Ele pergunta: o que vem primeiro: a manipulação da mídia que forma um público, ou o público que quer esta programação?

Pedrinho Guareschi – Na verdade, essa colocação é um pouco limitada, ela não dá conta da verdade. Laurindo Leal Filho também coloca essa questão. A mídia tomou conta do espectro e ela não dá chance para outros poderem colocar uma alternativa. É a velha história do pai que chegou para a filha e falou: minha filha, você pode se casar com quem quiser, contanto que case com Sebastião. Então a situação da mídia no Brasil hoje é essa, tu pode ver a televisão que quiser, contando que veja televisão, só tem uma. Quer dizer, só tem a televisão neoliberal do capital, dessas famílias que tomaram conta do espectro. Não existe uma TV pública, que seria então, de fato, pertencente ao público, como é de fato a BBC de Londres.

BoletimNPC – Poderia falar um pouco sobre a BBC

Pedrinho Guareschi – Quem comanda a BBC de Londres é um board, grupo de 54 membros representantes das forças vivas da nação, os sindicatos, universidades, as igrejas, depois os movimentos sociais, todas as forças vivas da nação têm seu representante. Esse board elege o presidente da BBC, então a BBC é pública, é das forças vivas da nação, da sociedade civil. Isso não existe no Brasil. Pela Constituição, pelo menos 1/3 da televisão deveria ser pública. Nós não temos nada. 94% é TV privada comercial. Porque, pela Constituição Federal, deve ser 1/3 de público, 1/3 comercial e 1/3 estatal. Na verdade, a comercial é toda poderosa e eles tomaram conta, e isso é preciso ser dito para a população, mas paradoxalmente e contraditoriamente quem deveria fazer isso é a própria mídia, e a mídia não faz e nunca vai fazer. Pelo contrário, não deixou nem regulamentar esse parágrafo na Constituição que diz que a mídia deve ser tripartite, nem isso o povo sabe, imagina se ele vai começar a trabalhar nisso.

 

Kátia – O senhor é um grande estudioso da questão da análise crítica da mídia e também de Paulo Freire. Que ensinamentos Paulo Freire nos traz hoje para nós fazermos a nossa comunicação?

Pedrinho Guareschi   – Eu reli os trinta livros de Paulo Freire, inclusive um sobre comunicação que se chama “Extensão ou comunicação”, que ele escreveu no Chile, um dos livros mais vendidos em Londres. A gente pode sintetizar Paulo Freire em duas grandes dimensões. O primeiro é a essência do ato pedagógico. É fazer perguntas, fazer o povo pensar. Quando você faz a pergunta, você não está dizendo nem sim nem não, mas provocando a pessoa a pensar e vai buscar as respostas. Nesse processo, ela se liberta. Por isso, a pergunta é fundamentalmente libertadora, por isso a pedagogia que faz a pergunta é uma pedagogia libertadora, porque obriga as pessoas a pensar.

A segunda dimensão, o conteúdo mais importante da educação e da comunicação. A comunicação e a educação são irmãs gêmeas. Tem uma frase de Paulo Freire que contém o conteúdo ético mais profundo dentre os grandes filósofos éticos hoje. Acho que ele vai a fundo porque ele diz o seguinte: “não há um que saiba mais, ou outro que saiba menos, há um que sabe uma coisa e outro que saiba outra”.

Se você leva essa frase a sério, muda tudo na tua vida. Você sabe uma coisa e eu sei outra, então vamos dialogar em pé de igualdade, respeitosamente.