Por Sérgio Domingues, abril de 2004
Os 40 anos do golpe militar de 1964 foram lembrados de várias maneiras. Na maioria das vezes, com a falta de memória que é própria de nossa história, sempre bem aproveitada pela grande mídia. Mino Carta fez questão de lembrar e Paulo Henrique Amorim, de avisar. Mas só isso não basta.
No 40º aniversário do terrível golpe de 64, a Globo fala da ditadura com desprezo. Cospe no prato que comeu porque está com o pires na mão. Quer o bilhão e meio que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social está pronto a lhe dar. A Folha destaca o apoio que deu à campanha das Diretas-Já com uma bem-feita campanha publicitária. Só não diz porque 20 anos antes das Diretas, ficou calada diante do golpe que acabou com as eleições para presidente. O Estadão nada fala sobre a manchete que publicou dois dias depois do golpe: “Democratas dominam toda a nação”. O Jornal do Brasil faz de conta de que não participou de uma tal de Rede da Democracia. Uma armação entre os principais jornais cariocas, criada em 1963 para derrubar João Goulart.
Por outro lado, dois textos andam chamando a atenção do público mais crítico. Um é a entrevista que Mino Carta deu para a AOL. O outro é um artigo de Paulo Henrique Amorim para a UOL.
O título da entrevista de Mino Carta diz tudo: “A mídia implorava pela intervenção militar”. O entrevistado diz que a grande imprensa nunca foi censurada pra valer. A Folha teria emprestado suas camionetes de entrega para transportar prisioneiros políticos para os locais onde seriam torturados. A censura ao Estado de São Paulo e ao Jornal da Tarde aconteceu por divergências internas aos golpistas. Nada a ver com liberdades democráticas. Os que realmente lutavam por esta última, e foram censurados e perseguidos, eram os jornais da chamada imprensa alternativa. Pasquim, Opinião, Movimento, Versus, Em tempo, são algumas das publicações representativas desse heróico tipo de imprensa.
1954: o primeiro ensaio do golpe opõe Tribuna da Imprensa e Última Hora
Parabéns para Mino Carta. Só que o papel golpista da grande mídia é bem anterior a 64. O golpe militar teve seus ensaios. O primeiro deles, em 1954. A grande mídia na época era dominada pela imprensa escrita. Entre os graúdos, estava o jornal carioca Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda. Este usava seu jornal para disparar contra o governo Getúlio sem dó. Por que? Porque Vargas vinha governando com um pé em cada canoa, desde que tomara posse em 1950. Queria agradar ao setor nacional do capitalismo sem espantar o capital estrangeiro. Ao mesmo tempo usava o movimento sindical pelego para conseguir uma base eleitoral popular. Era a chamada política populista, nascida da ditadura do Estado Novo.
Lacerda era o defensor da abertura da economia. Pertencia ao partido mais conservador da época, a União Democrática Nacional (UDN). Queria deixar o capital internacional deitar e rolar. Nossa vocação era agrária, dizia ele. Vargas não concordava. Não porque fosse um nacionalista, mas porque sabia que abrir a economia do jeito que queriam Lacerda e a UDN significaria concentrar a economia do país no setor rural. Isso tiraria empregos das cidades. Atingiria diretamente as condições de vida da nova e crescente classe operária urbana que servia de apoio a Getúlio.
Os setores representados por Lacerda e pela UDN diziam que essa resistência de Vargas era uma concessão ao comunismo. Quando uma greve parou 300 mil em São Paulo, em março de 53, eles já não tinham mais dúvidas. Era preciso derrubar o governo e esmagar o movimento organizado dos trabalhadores.
A utilização dos jornais era um elemento central. A Tribuna da Imprensa de 2 de agosto de 1954 gritava na primeira capa: “Somos um povo honrado governado por ladrões”. Referia-se a casos de corrupção na administração federal. Vargas também tinha um jornal para defendê-lo. Com ajuda financeira oficial, o Última Hora saía em defesa do presidente. No mesmo dia, a manchete do jornal getulista era “Esta semana o aumento para os servidores do Estado”. Nenhuma linha sobre as denúncias de corrupção feitas pelo jornal rival. O clima esquentava.
Em 1964, Lacerda, Chateaubriand, O Globo e o IPÊS ajudam no golpe
Um atentado contra a vida de Lacerda forneceu o pretexto para uma CPI que colocaria no banco dos réus Lutero Vargas, irmão do presidente. O responsável direto pela operação seria o guarda-costas do presidente, Gregório Fortunato. Tudo estava pronto para a derrubada de Getúlio e a subida ao poder da parte mais conservadora da burguesia. Com um tiro no próprio coração, Vargas fez naufragar o plano. A manchete do Última Hora de 25 de agosto de 1954 estampava em enormes letras vermelhas: “Getúlio Vargas Suicidou-se”. A população saiu às ruas em lágrimas e com raiva. Depredou o prédio do Diário de Noticias, um dos jornais anti-getulistas. Só não fez o mesmo com a Tribuna da Imprensa porque a polícia conseguiu impedir.
Dez anos depois, os conservadores acertariam a mão. Novamente, Lacerda estava à frente. Com ele, Assis Chateaubriand, dono da maior rede de comunicações da época, os Diários Associados, e o ainda modesto jornal O Globo, de Roberto Marinho. Também havia um recurso sofisticado. Eram os filmes de curta-metragem dirigidos Jean Manzon e produzidos pelo IPÊS (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais). Com a pequena presença da tevê nos lares, era nos cinemas que os golpistas atacavam. Exibidos antes da atração principal, os pequenos filmes de Manzon aterrorizavam os espectadores com a possibilidade de uma ditadura comunista. Convidavam à reação contra a baderna e o caos, simbolizados com imagens de greves, manifestações e passeatas. Todas essas iniciativas foram importantíssimas para preparar o clima para a instalação da ditadura dos generais.
Diretas-Já e derrota do golpe venezuelano mostram que o sistema tem falhas
É aí que entra o texto de Paulo Henrique Amorim. Ele diz, basicamente, que a mídia continua sendo um instrumento importante para derrubar governos. Entre outros exemplos, lembra a tentativa de golpe contra Chávez, na Venezuela, abril de 2002. Daí pula para uma preocupação com tentativas de desestabilização do governo Lula. A divulgação das fitas que iniciaram o caso Waldomiro seria um primeiro sinal dessa possibilidade.
Até aí, tudo bem. O alerta de Amorim é válido. No entanto, será que há motivos para temer um golpe contra o governo Lula? Luis Fernando Veríssimo publicou um artigo no Globo de 28 de março, dizendo que os únicos a estarem contentes com o governo petista são os banqueiros. E que ser amigo dos banqueiros é como ser amigo do aluno mais forte da escola. Você pode sair passeando pelo pátio ao lado do brutamontes, fazendo provocações. Os ofendidos não terão coragem de reagir. No máximo, ficarão xingando de longe.
Claro que amanhã ou depois, o tal amigo forte pode se invocar e largar na mão o baixinho folgado. Os banqueiros podem querer ainda mais de Lula. E este pode não estar em condições de dar. É claro também que a grande mídia pode fazer o mesmo. O dinheirão que o governo promete soltar pode não ser suficiente para os caprichos de uma Globo ou de uma Bandeirantes. SBT e Rede TV são contra o tal empréstimo. Mas, uma vez liberado, podem querer sua parte em pedaços iguais. Como não há o suficiente para todos, todos juntos podem entrar numa conspiração pela desestabilização do governo. O que fazer?
O artigo de Amorim parece ter um tom derrotista, do tipo “eles dominam tudo, não podemos fazer nada”. “Cuidado, governo Lula. Não pise nos calos deles porque eles podem se zangar, e aí…”. É como se o sistema fosse tão perfeito que não permitisse saídas. Não é bem assim.
A mídia foi importante na execução do golpe de 64. Mas o mais importante foi a dependência dos trabalhadores em relação ao governo de Jango. As organizações dos trabalhadores confiaram demais no setor getulista da burguesia. Quando veio a reação, esse setor preferiu ficar quieto. E os trabalhadores não tinham iniciativa própria para resistir.
Rádio comunitária e celulares na luta contra o golpe venezuelano
Sempre há brechas no sistema. E são essas brechas que o movimento dos trabalhadores precisam aproveitar. Mas só podem fazê-lo, se mantiverem a independência de classe. Quando isso aconteceu, a mídia foi desmascarada. É o caso da Globo quando tentou esconder os comícios das Diretas de 1984 e do golpe contra Chávez.
A reação popular que devolveu o poder a Chávez aconteceu porque uma rádio comunitária furou o bloqueio da grande imprensa. Esta dizia que Chávez havia renunciado e não havia mais nada a fazer. A rádio Fé e Alegria, da periferia de Caracas, procurou informações nas agências internacionais. Descobriu que não havia confirmação da renúncia do presidente venezuelano. Começou a divulgar. As pessoas passaram a avisar umas às outras por telefone celular. A rádio foi sintonizada em toda a parte pobre da cidade. Esse tipo de comunicação alternativa possibilitou o cerco do povo ao palácio presidencial e a exigência do retorno de Chávez.
É verdade que a manipulação da informação é um perigo. É verdade que para preveni-lo é preciso acabar com o monopólio dos meios de comunicação no Brasil. Mas faz parte dessa luta explorar as contradições de um poder tão grande. Esses são os elementos que temos que ter presentes. Não podemos ser ingênuos quanto ao poder da grande mídia, nem conformados em relação a ele. O governo Lula nada tem de ingênuo. No entanto, capricha no conformismo. Cabe às organizações dos trabalhadores e da população manter distância desse tipo de raciocínio medroso. Se preparar para reagir contra os poderosos mantendo a independência de classe.