Publicado em 03.01.2011 – Por Gustavo Barreto, do Consciencia.net
Filme fruto de parceria entre quatro universidades federais mostra a hipocrisia do discurso da “modernidade” no campo brasileiro e expõe realidade dos migrantes nordestinos. Obra de 2007 está agora disponível no YouTube. [Ver links no final da matéria]
Do Piauí, do Maranhão e de outros Estados, migrantes brasileiros deixam suas famílias e “desabalam para São Paulo”. Vai todo mundo “pro corte de cana”. Seu Luiz, do município de Codó, no Maranhão, é um deles. “Não sei se eu vou, não sei se eu não vou, meu Deus. Aí fica naquela, sabe? Mas que vai resolvendo eu ir”, conta.
“Por mim ele não ia não”, conta a bem-humorada sogra de Luiz, Tereza. “Eu acho dificultoso ele pra lá e nós pra cá. A mulher dele fica aí sofrendo”. Quando foi pela primeira vez, ela completa, chegou “magrinho, magro demais”. Luiz argumenta: “Na idade que eu tô, pra ir não é porque eu queira. É por necessidade. Porque se eu não ir, aqui não tem como me ajudar meus filhos. De maneira alguma”.
A dura realidade de Luiz e de outros milhares de cortadores de cana-de-açúcar é tema do documentário “Migrantes” (2007), fruto de uma parceria entre a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal do Piauí (UFPI) e Universidade Federal do Maranhão (UFMA). O documentário pode ser acessado desde novembro de 2010 na página de vídeos YouTube.
Esta é uma realidade pouco conhecida. Os jornais, TVs e revistas costumam destacar a “modernidade do campo” e o desenvolvimento agrário brasileiro – automatizado, justo e sem grandes problemas, cuja principal ameaça seriam os grupos de trabalhadores politicamente organizados. Um belo roteiro de ficção.
A realidade é o foco deste documentário. Entre outros assuntos, trata dos “grandes fazendeiros”, que cercam a terra, expulsam a população local e não deixam ninguém mais produzir – mas também não produzem. A consequência é conhecida dos pesquisadores e trabalhadores rurais: migração e aumento da miséria nas grandes cidades.
Outra realidade pouco destacada na grande imprensa não pode ser contabilizada: as famílias são despedaçadas. A busca pela sobrevivência dá lugar, nas cidades de origem, à saudade e à tristeza de viver em uma família sem pais ou irmãos. Ficam apenas as mulheres, crianças e aposentados. São filhas, mães, esposas, cada qual sofrendo à sua maneira.
Desrespeito a direitos humanos mais básicos
Em 2008, pesquisadores da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) observaram que o desgaste físico diário do cortador de cana é igual ao de um maratonista. Um estudo sobre o corte manual da cana-de-açúcar no interior paulista sobre a ergonomia no trabalho do cortador afirmou que em apenas 10 minutos esse trabalhador corta 400 Kg de cana, realiza 131 golpes de facão e flexiona o tronco 138 vezes.
A extenuante jornada não conta com repouso. O objetivo é quase sempre garantir a sobrevivência das famílias dos cortadores. No entanto, nestas “modernas” usinas os trabalhadores são obrigados a cortar no mínimo 10 toneladas de cana/dia para permanecerem empregados. Além disso, são submetidos a condições de trabalho análogas ao trabalho escravo, tal como o endividamento contínuo na fazenda.
Segundo outro estudo, “Por que morrem os cortadores de cana” (2006), a morte dos trabalhadores assalariados rurais cortadores de cana está relacionada ao pagamento por produção.
Para Francisco Alves, que também é um dos diretores do documentário e professor do Departamento de Engenharia da UFSCar, os processos de produção e de trabalho vigentes no Complexo Agroindustrial Canavieiro foram concebidos objetivando a produtividade crescente do trabalho e, combinados ao pagamento por produção, “provocam a necessidade de os trabalhadores aumentarem o esforço despendido no trabalho”. “O crescimento do dispêndio de energia e do esforço para cortar mais cana provoca ou a morte dos trabalhadores ou a perda precoce de capacidade de trabalho”, escreveu Francisco Alves.
Para Beto Novaes, outro diretor e roteirista, o filme serve para preencher uma lacuna quanto ao conhecimento da realidade vivida por esses trabalhadores. “Há muita desinformação das pessoas quanto ao tema. Muitas vezes, a realidade está ao lado, mas ‘banalizada’ e ‘naturalizada’ na interpretação cotidiana. Nossa intenção é transformar isso em indignação, estimular o debate, socializar as informações”.
Sobre o filme
A direção do documentário “Migrantes” é de Beto Novaes, Francisco Alves e Cleisson Vidal, com edição de Luiz Guimarães. O filme, com cerca de 40 minutos de duração, teve apoio do Ministério da Educação e do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (NEAD), vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) do Governo Federal. A produção é da MP-2.
Lançado no final de 2007, durante Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), também teve lançamentos regionais. Na Bahia, foi exibido no Encontro da Associação Brasileira de Estudos sobre Trabalhos; em Sergipe, num encontro de formadores da Contag; na Câmara Municipal de Piracicaba (SP), o lançamento teve a presença de representantes de 28 municípios da região, e foi transmitido pela TV Câmara; além de ser lançado na cidade de Santo André (SP); na Universidade Estadual Paulista (Unesp); e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
O documentário pode ser comprado através da editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que participou do projeto por meio de seu Instituto de Economia. Os pedidos podem ser feitos ao e-mail fernanda@editora.ufrj.br. Também é possível assisti-lo no YouTube, abaixo, ou fazer o download aqui, aqui ou aqui.