Diante do episódio da destruição de um veículo da RBS TV, no RS, há quem flerte com um argumento baseado na denúncia da prática editorial de criminalização dos movimentos sociais. O antídoto a essa prática da grande mídia é a via pirotécnica? Ou será que isso é tudo o que ela deseja? Por Marco Aurélio Weissheimer, 15/3/2005, na Agência Carta Maior
O episódio que culminou na queima de um veículo da RBS TV durante uma manifestação de pequenos agricultores no interior do Rio Grande do Sul pode servir de mote para reacender, por um viés torto, a questão do relacionamento entre a grande mídia e os movimentos sociais. O ataque à equipe de reportagem da televisão gaúcha que teve o equipamento e o veículo incendiados foi um erro. Ponto. É preciso rejeitar a tentação de construir o seguinte argumento justificatório: a linha editorial da RBS, assim como a de outros grandes grupos midiáticos, baseia-se, entre outras coisas, na tentativa de criminalização dos movimentos sociais (o que é verdade); logo, o ataque à equipe de reportagem é uma reação compreensível por parte dos integrantes dos movimentos. Esse argumento é equivocado por várias razões. Uma delas é que ele é tudo o que empresas como a RBS desejam para se colocar na posição de vítimas e fortalecer sua linha editorial de criminalização.
A edição do jornal Zero Hora, no dia seguinte aos protestos (16 de março) é um claro exemplo disso. O protesto que reuniu milhares de pequenos agricultores diante do Palácio Piratini, exigindo que o governador Germano Rigotto tome alguma providência para atenuar os efeitos da seca no Estado foi completamente secundarizado. A manchete do dia é: “Lula é recebido no Estado sob pressão dos movimentos sociais”. E, logo abaixo, outro título denuncia a agressão contra a imprensa, com uma foto do veículo da empresa em chamas. O governo Rigotto passa com o lombo liso, como se diz no Rio Grande. Esse, provavelmente, já seria o tratamento editorial dos protestos do dia 15, mas o ataque à equipe da RBS TV forneceu o álibi necessário para acentuá-lo. Nas páginas internas, o jornal relembra outros episódios do que caracteriza como “violência em série praticada pelos movimentos sociais”. E a cereja no pudim vem no editorial.
Construindo um argumento
Intitulado “Agressão à sociedade”, o editorial inicia da seguinte forma: “Que espécie de movimento social é este que abriga delinqüentes encapuzados, que se julgam poderosos o suficiente para agredir a liberdade de imprensa e destruir o patrimônio alheio?”. E acrescenta, mais adiante: “Tais atos, além de se inserirem numa trajetória de ilegalidades a que o país tem assistido entre constrangido e alarmado, representam uma agressão a direitos fundamentais de toda a sociedade”. O editorial de ZH vê um “ovo da serpente” em gestação no interior dos movimentos sociais. “Como um ovo da serpente, ela (a intolerância) é o resultado de fanatismo e de preconceito e produz um clima que não ajuda na construção de uma sociedade que busca aperfeiçoar-se”. E conclui: “o direito à liberdade de expressão e de imprensa não é uma prerrogativa de rádios, jornais e televisões, mas um direito da sociedade”.
Diante dessa argumentação, os atingidos pela prática editorial de criminalização dos movimentos sociais podem se sentir tentados a lembrar algumas coisas relacionadas aos compromissos da RBS com a democracia e com a sociedade. Podem se sentir tentados, por exemplo, a lembrar as declarações de um dos diretores da empresa sobre um recente caso de agressão a um jornalista no Pará. Paulo Tonet Camargo argumentou que o caso do jornalista Lúcio Flavio Pinto, agredido pelo dono do maior grupo de comunicação do Pará, não era um caso de ataque à liberdade de imprensa e à sociedade, mas apenas uma rixa pessoal. Ou ainda lembrar as íntimas relações que o grupo manteve com a ditadura militar, período no qual começou a construir seu império de comunicação na região sul do país. Ou o envolvimento da empresa na privatização da CRT (companhia telefônica gaúcha) durante o governo Antônio Britto. O baú da memória gaúcha está cheio de exemplos.
O passo em falso
O problema de relacionar esses fatos com o episódio do ataque à equipe de reportagem da empresa é o passo seguinte, ou seja, de algum modo justificar o ocorrido. Como fez, por exemplo, Valdir Zottis, líder da coordenação estadual do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA): “Vamos apurar com calma, para saber quem foram os autores desse ato. Por enquanto, não dá para dizer que foram e nem que não foram integrantes do MPA. Porém, o que aconteceu, é uma expressão da indignação que toma conta de um povo que espera há tanto tempo por ajuda governamental e nada recebe. Além disso, há uma indignação com alguns veículos de imprensa, que muitas vezes distorcem os fatos relacionados aos movimentos sociais”. Aparece aí o passo em falso. A parte final da declaração fornece munição para a RBS fortalecer sua linha editorial de ataque aos movimentos sociais, como faz em seus veículos no dia seguinte aos protestos.
E o problema com esse tipo de argumento não é simplesmente algo na linha “um erro não justifica outro”. O furo é muito mais embaixo. É um fato que a linha editorial da RBS bebe nas águas da criminalização dos movimentos sociais. É um fato também que seu compromisso com a democracia e com a liberdade de imprensa termina onde começa seu compromisso com seus interesses empresariais. Interesses, aliás, cada vez mais diversificados que incluem, entre outras coisas, condomínios de luxo na zona sul de Porto Alegre. Mas o que se segue disso? Diante desse cenário, o caminho é atacar os profissionais da empresa, tomar seus equipamentos, seus veículos, e tocar fogo em tudo? Possivelmente, há quem alimente sonhos eróticos com essa via. O problema é que, além de ser uma alternativa autoritária, ela é uma estratégia burra que só fortalece o que pretende enfraquecer. O que sugere, aliás, que todo caminho autoritário é um caminho estúpido.
Outro argumento é possível
Como enfrentar o tema da criminalização social, então? Descartadas as vias pirotécnicas, há várias coisas que podem ser feitas. Em
primeiro lugar, desenvolver uma relação honesta e qualificada com os trabalhadores dos meios de comunicação. É um erro grosseiro colocá-los em um mesmo saco de gatos, como se não houvesse afinidades possíveis entre quem está acampado na beira de uma estrada e um profissional que trabalha duro e recebe salários miseráveis. Em segundo lugar, desenvolver alternativas de comunicação capazes de disputar a opinião da sociedade. Neste aspecto, a esquerda padece de um mal crônico, revelando-se incapaz de construir uma mídia própria que vá além da divulgação dos interesses imediatos desta ou daquela organização, desta ou daquela eleição. Sem esses dois passos básicos, só restará mesmo ficar alimentando a cultura de denúncia e xingamento contra a prática da grande mídia, prática aliás que só reflete seus interesses de classe.
A RBS, a Veja, o Estadão e outros baluartes da grande imprensa brasileira só agradecem a esse caminho. Com sua posição fortalecida, seguem adiante com sua missão. O Rio Grande do Sul é um exemplo extremamente didático. Agora mesmo, a RBS prepara uma cobertura especial sobre a 46ª Semana de Porto Alegre, a ser comemorada de 19 a 29 de março. A empresa decretou mobilização total. Seus principais veículos, Zero Hora, Diário Gaúcho, RBS TV, TV COM e Rádio Gaúcha preparam matérias especiais para o aniversário da cidade, comemorado no dia 26 de março. Conforme a própria empresa anunciou, será a primeira vez que repórteres do jornal e da TV farão reportagens especiais em conjunto. Serão veiculadas mensagens de várias personalidades que dirão por que amam a “Cidade Sorriso”. Algo nunca feito antes. Uma espécie de comemoração pelo fim do ciclo de 16 anos de governos petistas na cidade, dizem algumas vozes mais desconfiadas.
Como diria o falecido Leonel Brizola, a empresa está defendendo seus “interésses”, como, por exemplo, a possibilidade de estabelecer um novo patamar de diálogo com a administração municipal visando a flexibilização de padrões ambientais que obstaculizam o empreendedorismo imobiliário na cidade. O que fazer, então? Lançar uma campanha com um slogan do tipo: “você já queimou seu carro da RBS hoje?”. Ou pensar seriamente na batalha da comunicação, onde a esquerda vem acumulando um rosário de derrotas em todos os níveis? Esta é uma batalha perdida? Talvez. Não custa lembrar que, no momento em que este artigo é escrito, o Ministério das Comunicações pode estar sendo entregue ao deputado Ciro Nogueira (PP-PI), um político que, entre outros feitos, tem em seu currículo a tarefa de ter coordenado o recolhimento de assinaturas para considerar urgente o projeto que aumentava o salário dos parlamentares. Assim é fogo.
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Marco Aurélio Weissheimer é jornalista da Agência Carta Maior (correio eletrônico: gamarra@hotmail.com). Original da Agência Carta Maior, clique aqui