Por Venício Lima*
Do Observatório da Imprensa

Já foram muitas as análises e os comentários publicados neste Observatório e em outros veículos sobre os eventos ocorridos em Tucson, Arizona, no sábado, dia 8 de janeiro.

Apesar do enorme desastre da região serrana do Rio de Janeiro – que nos afeta a todos, muito mais de perto – é imperativo que se faça pelo menos um registro em relação aos trágicos eventos nos Estados Unidos por envolverem diretamente o objeto principal de nossa observação semanal: a mídia.

Intolerância em nome da democracia
Em recente balanço que fiz sobre as políticas públicas de comunicações ao longo dos oito anos de governo Lula (ver, neste OI, “O balanço dos governos Lula
) mencionei o que acredito tenha sido uma das características do período, isto é, o recrudescimento da posição radical dos grupos privados de mídia em relação a qualquer proposta de regulação das comunicações, oriunda ou não do governo.

Como exemplos citei a partidarização da grande mídia e as inacreditáveis reações provocadas pela aprovação do Projeto de Indicação nº 72.10, pela unanimidade da Assembléia Legislativa do Ceará (depois vetado pelo governador Cid Gomes). Em Brasília, o advogado e editor do suplemento “Direito & Justiça” do Correio Braziliense, referindo-se às propostas aprovadas pela 1ª Conferência Nacional de Comunicação, escreveu que “Goebbels, encarregado por Hitler da difusão da propaganda nazista e de eliminar adversários do regime, não teria feito melhor”.

Terminava, então, o referido balanço afirmando que “considerando a radicalização e a intolerância que têm marcado a relação entre os principais atores do campo nos últimos anos, o futuro próximo certamente reserva imensos desafios para a democratização das comunicações no Brasil”.

Quão distante de nós ainda está o tipo de intolerância radical que se transforma em violência criminosa e que já se tornou uma triste rotina nos Estados Unidos?

Intolerância radical na mídia americana
Em novembro de 2010, em comentário que não constava do texto escrito preparado para a audiência pública da qual participava, o senador Jay Rockefeller (democrata da Virgínia do Oeste), presidente da Comissão de Comércio, manifestou sua irritação contra a radicalização política na mídia dos EUA. Referindo-se diretamente aos principais executivos das redes de TV a cabo, disse ele:

“Tem um pequeno ‘bug’ dentro de mim que quer a FCC [Federal Communications Commission] dizendo à FOX e à MSNBC: ‘Fora. Desligue. Chega. Adeus’. Isso faria um enorme favor ao discurso político; à nossa habilidade de fazer nosso trabalho aqui no Congresso; e ao povo americano, para que todos fossem capazes de conversar uns com os outros e ter alguma fé em seu governo e, mais importante, em seu futuro”

No texto escrito ele também afirmou:

“Quando se trata de produzir conteúdo, nossa máquina de entretenimento está, muito frequentemente, numa corrida para baixo. Ainda pior, nossos noticiários se entregaram totalmente às forças do entretenimento. Ao invés do fiscal que exerce um controle sobre os excessos do governo e dos negócios, temos o latido interminável de um ciclo noticioso de 24 horas [the endless barking of a 24-hour news cycle]. Nós temos um jornalismo que está sempre ávido pelo próximo rumor, mas insuficientemente interessado pelos fatos que podem nutrir nossa democracia. Como cidadãos, estamos pagando o preço” (ver aqui nota do New York Times sobre o assunto).

A polêmica posição do senador Rockefeller foi, por óbvio, bombardeada pela grande mídia nos EUA como uma ameaça à liberdade de imprensa. Sua lembrança, no entanto, serve para mostrar como não escapava a empresários/políticos como ele o papel de instigadora da intolerância que a mídia americana vem desempenhando no país, sobretudo após a eleição e posse de Barack Obama.

Que se saiba, as declarações de Jay Rockefeller não mereceram maiores comentários na grande mídia brasileira. O fato é apenas mais um a confirmar as imensas dificuldades que a mídia tem de lidar criticamente com o papel que ela própria joga na construção democrática, para além da retórica da defesa da liberdade de expressão associada a seus interesses comerciais.

Por outro lado, não é fácil para um jornalista setorial, imerso no cumprimento de uma pauta e no atendimento ao “enquadramento” esperado por seu editor/patrão, avaliar qual a “representação” da sociedade está ajudando a construir cotidianamente.

Some-se a tudo isso a preocupante característica da internet que parece facilitar a radicalização de opiniões. Perry Hewitt, da Universidade de Harvard, afirmou recentemente:

“A internet pode ser uma força positiva para criar laços sociais, mas negativa no que diz respeito à violação das liberdades civis e no aumento da polarização de opiniões” [ver aqui].

EUA vs. Brasil
Não temos entre nós o que tem sido chamado de “cultura do ódio” e, menos ainda, a tradição de acesso e uso indiscriminado de armas de fogo que existe nos EUA.

Apesar disso, não deixa de ser assustador que nossa oposição política e eleitoral, não só já se utilize de técnicas e estratégias importadas dos radicais de direita americanos (ver “Guerra suja na campanha eleitoral), como sua retórica discursiva muitas vezes resvale para a irresponsabilidade de acusações e comparações históricas infundadas e descabidas.

Estaria sendo construído aqui um rastro de intolerância política radical que, de certa forma, tem se manifestado nos embates sobre a regulação da mídia?

Oxalá minha análise esteja equivocada.

*Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposen
tado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher, 2010.