Mais de 900 famílias da Vila Autódromo, localizada na zona oeste do Rio de Janeiro, estão ameaçadas de despejo. A área possui um grande valor imobiliário e está na mira das construções para receber a Copa do Mundo e as Olimpíadas. A seguir, o depoimento da ativista comunitária Jane Nascimento.
Depoimento recolhido por Tatiana Lima, na Vila Autódromo, Rio de Janeiro

Publicado originalmente no site Desinformémonos

“Meu nome é Jane Nascimento. Nasci no Rio de Janeiro. Sou uma ativista social e luto todos os dias para não ser despejada da minha casa, onde vivo há nove anos com minha família, na comunidade da Vila Autódromo, localizada na zona oeste do Rio. O medo de ser removida pela prefeitura é constante e paralisa a vida. Não posso trabalhar mais e tampouco faço o que mais amo: atividades sociais com as crianças na comunidade. Não sobra tempo para nada, pois todo dia tenho que ir a um fórum, fazer uma manifestação ou atender um morador com o coração perturbado e sem fé no futuro.

Vim para Vila Autódromo em 26 de abril de 2002. Mas moro na região desde os oito anos de idade, quando a avenida Aberlardo Buerno – que fica à margem da comunidade – não existia, e a mata era virgem e fechada. A luz era de lampião. Nós pescávamos na lagoa, moíamos cana, plantávamos aipim e fazíamos beiju. Era bem rural aqui.  Entrava muita cobra em nossas casas e, quando chovia, muita lama. Aqui não passava carro. O transporte era só a cavalo ou de bicicleta. Havia pequenas famílias de pescadores na região, mas não era ainda uma comunidade estruturada como é hoje.

Estudei até o ensino médio. Estudo para mim é muito importante.  Não fiz faculdade porque era muito perigoso naquela época.  Tínhamos que passar por uma trilha que, às vezes, homens se escondiam para agarrar as meninas. Nossa proteção era feita com apitos. Quando um morador ouvia um barulho de gente correndo e percebia o barulho das folhas secas partindo, começavam os apitos. Aí, moradores de outras casas ouviam e também apitavam. A ação era repetida, gerando um som contínuo como o de uma sirene. O tarado se assustava e desistia.

Esses terrenos que, hoje, abrigam vários prédios imensos eram antigamente sítios com pequeníssimas casas, onde eu e minha família morávamos. Éramos caseiros. As pessoas que tinham boa situação compravam terra aqui, mas não queriam morar na região, porque só havia mato. Por isso, colocavam os caseiros para tomar conta da terra. Um dia meu pai falou, e ele estava certo: “Aqui, no futuro, haverá vários empreendimentos e vão expulsar o povo”.

Foi por meio das obras do autódromo que o povoamento começou. As pessoas gostam de morar perto de onde trabalham. É engraçado que o governo não percebe isso. Na verdade, o poder público até sabe, mas, como ele é ausente, finge não saber e fecha os olhos para o crescimento desordenado da cidade para depois culpar, injustamente, os pobres e a miséria por tudo de ruim que acontece. Diversas comunidades surgiram assim nessa área: Arroio Pavuna, Asa Branca, Vila Autódromo e tantas outras.

Essa área começou a ser urbanizada aos poucos e habitada de forma mais visível a partir de 1994. Foi só nesse ano que os caseiros começaram a sair, e os sítios deram lugar aos prédios. Agora é um lugar totalmente diferente de quando conheci. Escolhi esse lugar para morar porque aqui é tranquilo e não tem violência. O portão da minha casa fica aberto. Essa é a realidade da Vila Autódromo até hoje.
Nunca gostei de política, mas sempre gostei de ajudar, em especial nas atividades com crianças. Meu ativismo social começou na escola da minha filha. Com o tempo, descobri que a escola tinha uma verba rotativa. Quando tinha noticias que uma família estava sem dinheiro para comida ou remédio, eu ia até a diretora. Educadamente, falava com ela que a família precisava de ajuda e pedia para comprar o remédio ou uma cesta básica para a criança.

Com o tempo, a direção da escola passou a não me ver com bons olhos, mas fui eleita de forma espontânea como representante dos alunos e pais no conselho de educação. Este conselho se reunia junto com a prefeitura mensalmente. Descobri que aconteciam desvios de matérias desde papéis até arroz, feijão, enfim, comida para merenda das crianças.

A comida era péssima. Muitas crianças reclamavam que tinha gosto de cocô. Achava que era exagero, mas fui comer um dia na escola e senti o cheiro de fezes no feijão. Na reunião com a secretaria municipal de educação falei a verdade. Cada vez mais a diretora me detestava. Minha filha passou a ser perseguida na escola. Minha militância política começou ali.

Meu trabalho com as crianças foi o principal motivo que me fez aceitar participar da associação de moradores, mas depois vieram as ameaças de remoções. Primeiro com nome de Jogos Panamericanos. Agora com o nome de Jogos Olímpicos. Os eventos são só uma desculpa. A verdade é que os empresários não aceitam que gente humilde como nós viva entre eles. A terra valorizou muito. Agora, eles querem o terreno para construir grandes projetos imobiliários e usam os eventos como desculpa, ou criminalizam o povo, dizendo que somos poluidores.

O governo nos roubou tudo. Nosso tempo com a família. Meu ativismo social com as crianças. Nossa paz. Não sobra tempo para nada. Está muito pesado. As pessoas têm medo de se envolver com a Associação de Moradores. A gente corre risco porque lutamos contra tudo. Contra as empresas privadas; contra o capitalismo, que tenta passar com o trator por cima da gente e derrubar a comunidade; contra o governo, que não respeita nossos direitos.

Já trabalhei na empresa Sharp Corporation. Saí porque tinha roubo, e aquilo não era ambiente para mim. Ganhava seis salários mínimos na época. Você não me reconheceria. Andava de unha pintada, salto alto, roupa social, impecável. Larguei tudo para trabalhar com artes plásticas. Só não trabalho hoje porque não tenho como atender clientes e cumprir prazos, tendo que ir toda hora à Defensoria Pública e às manifestações.

Não sei se vamos conseguir uma solução favorável para comunidade, mas temos que fazer resistência e batalhar. Para mim, lutar pela Vila Autódromo é lutar por humanismo e cidadania. E não vou parar.”