Mário Maestri. O nome estadunidense pomposo não correspondia ao rapaz. Stuart Edgar Angel Jones era apenas um jovem da classe média carioca, como tanto outros que, desde 1967, participou alegre das mobilizações estudantis contra a Ditadura Militar. Seu nome complicado deveu-se a tropeço do coração da mãe, a mineira Zuleika Gomes Netto, que conheceu, em Belo Horizonte, onde morava e estudava, o estadunidense Norman Angel Jones, filho e neto de missionários protestantes.

O casamento foi curto. Já no Rio, Zuleika, ou Zuzu, pros íntimos, teve que segurar a barra e meter a cara na costura pra sustentar o rebento de nome estranho e duas filhas que o seguiram. Desde Minas, fazia vestidos pra primas com qualidade e imaginação. Em meados de 1950, casada, ganhava uns pilas costurando pra fora saias baratas, pois a vida de mulher de profeta nunca foi fácil. 

Zuzu não era mulher de brincadeira. Desquitada, fez da necessidade virtude, foi à luta com mil idéias na cabeça e um tesourão na mão. Na época, sobretudo no Brasil, os costureiros chiques lançavam modas complicadas, tudo meio copiado dos estranjas, pras burguesas enricadas, enquanto as costureiras suavam na máquina de costura produzindo o riscado pelos bam-bam-bans da moda. 

Zuzu pôs fim ao semi-monopólio masculino. Tornou-se figurinista, criando literalmente moda nacional capaz de vestir a mulher de todo dia, dessas que correm apressadas atrás do ônibus no caminho do batente. Levou simplesmente pras passarelas o jeito, a feminilidade e a simplicidade da brasileira comum. Os motivos de sua costura foram os da terra; os adereços, bambu, conchas, pedras; as cores, alegres e populares. Sobretudo revolucionou a moda servindo-se de panos populares como a chita, o gorgorão, o zuarte e, até mesmo, o tecido de colchão! Propôs moda pra população, baseada em invenção, trabalho e alegria de viver, emancipada da ditadura do tecido caro. Em inícios dos anos 1970, abriu butique e levou sua criação pros States, onde foi vitrine de grandes lojas, matéria em revistas e vestiu ícones da cinematografia. 

Enquanto Zuzu abraçava as nuvens, o pimpolho via o mundo desabar. Em fins de 1968, chegara ao fim a recessão. A economia cresceu, iniciou o “Milagre”, alimentado por empréstimos e abertura internacional que ainda hoje continuamos a pagar. O crescimento das exportações e, sobretudo, do emprego e consumo, principalmente das classes médias e altas, isolou a oposição, reprimida duramente. 

Filho de dona Zuzu não era de desencilhar o cavalo ao primeiro pinote. Com alguns poucos milhares de companheiros, partiu pra agarrar o tigre à unha. Saltou do movimento estudantil à luta armada, no Movimento Revolucionário 8 de Outubro [MR8], um dos tantos grupos que sonharam iniciar a revolução isolados, nem que fosse no início, dos trabalhadores. 

Em 1970, Stuart Angel já vivia, sob o nome de Paulo, na clandestinidade, acompanhado por Sônia Maria, a companheira de vida, ideal e calvário. Preso no Grajaú, na manhã de 14 de junho de 1971, foi levado para a Base Aérea do Galeão, para ser torturado, sem interrupção e medida. Ao cair da noite, estropiado, foi amarrado a um jipe, com a boca no cano da descarga. 

Avisada pelo telefone da queda do filho, como tantas outras mães, Zuzu iniciou a dilacerante vigília nas portas cerradas dos quartéis e centros de tortura na esperança de, ao menos, impedir um assassinato frio. Diante da recusa cínica de militares e policiais de reconhecerem a prisão, enterrou-se na alma de Zuzu a certeza da morte do filho, confirmada por carta de militante, preso em cela próxima ao local da tortura. 

Zuzu Angel não se afundou na dor. Recolheu o fuzil caído, retomando a seu modo o combate do filho. Por cinco anos, em terrível guerrilha democrática, disparou forte contra os ditadores com a poderosa munição de mulher que se construíra com o poder da criatividade, da decisão e do trabalho. 

Passou a denunciar, aqui e lá fora, as barbaridades que os militares desdobravam-se para esconder. Em desfiles, substituiu as cores alegres e os papagaios coloridos por sinistros tecidos estampados com pássaros mortos e anjos amordaçados. Envolveu na sua luta clientes e amigos famosos, do Brasil e USA. Distribuiu a deputados estadunidenses e ao fúnebre Henry Kissinger dossier sobre o filho, para que não dissessem que não sabiam o que faziam no Brasil. 

Vigiada, difamada, ameaçada, Zuzu não ensarilhou as armas, até que, na madrugada de 14 de abril de 1976, encontrou a morte quando seu carro foi precipitado ribanceira abaixo, na Estrada da Gávea. Não completara cinqüenta anos. Uma semana antes, entregara documento a Chico Buarque para ser publicado caso algo lhe ocorresse. Testemunha presenciou jipe militar afastar-se do local do acidente. 

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Por diversas razões, o filme “Zuzu Angel” deve ser visto. Com coragem, exatidão e sem pieguice, retrata a vida e a luta dessa mulher emblemática, que merecem ser apresentadas ao público, rompendo o silêncio orquestrado sobre fatos dilacerantes e crimes mesquinhos ainda impunes. O filme não chega porém jamais a registrar a tensão dos fatos que apresenta. 

Em “Zuzu Angel”, Sérgio Rezende não repete o feito de “Lamarca”, de 1994, umas das principais obras do cinema político nacional. Nesse filme, fixa magistralmente o perfil de Lamarca, o militar-guerrilheiro valente, desprendido e politicamente inconcluso. As últimas cenas, com o capitão carregado nas costas pelo fiel Zequinha, camponês e operário nos panos de guerrilheiro, através dos sertões baianos, em direção ao derradeiro fim, constitui candente metáfora do isolamento e trágicas ilusões da guerrilha no Brasil.  

 

Em “Zuzu Angel”, Patrícia Pilar, sempre superficialmente bela, jamais incorpora a dor e destemerosidade de Zuzu Angel. O filme registra também com dificuldade a euforia das mobilizações de 1968 e, sobretudo, o angustiante isolamento dos combatentes cercados pela repressão, nos anos 1970. Porém, nada impede que a emoção invada o espectador ao escutar, com o filme concluindo, a música “Angélica”, escrita após a morte de Zuzu, por Chico Buarque, seu amigo e companheiro na luta. “Quem é essa mulher? Que canta este estribilho. Só queria embalar meu filho. Que mora na escuridão do mar.”