Por Argemiro Ferreira, 28/5/2005, na Tribuna da Imprensa

NOVA YORK (EUA). Leitores familiarizados há anos com minha posição sobre retratações de veículos da mídia sabem que desde a década de 1980 alerto para uma contradição perigosa: os veículos com recursos para fazer reportagens de investigação, onerosas por exigirem tempo e profissionais qualificados, tendem a evitá-las por atraírem controvérsia; e os pequenos, que têm coragem e disposição para fazê-las, carecem de recursos.

A contradição, claro, resulta de problema maior, diagnosticado com precisão há quase três décadas pelo jornalista e professor Ben Bagdikian: a concentração da mídia, crescentemente sob controle de um número cada vez menor de corporações, com interesses promíscuos (podem incluir, por exemplo, companhias fornecedoras do Pentágono e indústria de armas, o que impede cobertura confiável de guerras como a do Iraque).

A onda das retratações ditadas por altos executivos de corporações não deve ser, de forma alguma, confundida com autocrítica saudável, grandes ou pequenas correções feitas pelas próprias redações, seus profissionais responsáveis e ombudsmen, ou mea culpa traumático como os gerados pelos escândalos Jayson Blair (“New York Times”) e Stephen Glass (“New Republic”). Esses, claros, são pontos pacíficos.

Cúpula recua, jornalistas não

No caso recente de “Newsweek”, identifiquei prontamente, já a 17 de maio, o modelo em moda da retratação ditada por interesses de cúpula, ignorando a realidade para abrir caminho a entendimento com os donos do poder. Não por acaso, os protestos em Washington foram feitos em frente à sede do “Washington Post”, da mesma corporação proprietária de “Newsweek” (cuja redação central fica em Nova York).

Expliquei como via a situação já no título daquela primeira coluna sobre o caso: “Pedindo desculpas por dizer a verdade”. Dois dias depois acrescentei mais dados. E citei lorota de “Newsweek” em 2003 para apoiar ataque ao Iraque (não se desculpou e nem se retratou da mentira). Lembrei retratações semelhantes de outros no passado recente (veja “Rendição de `Newsweek confirma covardia da mídia”, a 18 de maio).

Ironicamente, agora “Newsweek” vê seu texto apontado antes como causa de 16 mortes no Paquistão – o do Corão na latrina, pelo qual pediu desculpas e fez a tal retratação pública, determinada pela cúpula da corporação – ser confirmado tanto por documentos secretos do FBI obtidos pela ACLU, maior organização de liberdades civis do país, como por investigação ainda em andamento no Pentágono.

Não por acaso, uma das coisas de que a revista se retratara era a informação de que havia investigação no Pentágono sobre aquele e outros incidentes semelhantes. “Newsweek” se desdisse claramente à revelia de seus jornalistas, entre eles Michael Isikoff (visto no passado como herói dos extremistas conservadores, hoje integrados ao governo Bush, pela obsessão dele então com a vida sexual do presidente Clinton).

Fontes anônimas, notícias plantadas

E agora, com que cara ficam os figurões executivos da corporação Washington Post Co, dona do jornal e da revista? Pessoalmente acho que prestaram um serviço ao jornalismo – confirmaram explicitamente a suspeita sobre eles próprios. Curiosamente, o “Post” e a “Newsweek” anunciaram depois (como outros, inclusive o austero “New York Times”) uma nova política para deter o abuso de fontes anônimas.

Também falei de tais fontes na última coluna sobre o tema, dia 21 (“`Newsweek , fontes anônimas e o novo jornalismo dos EUA”). Há muito cito o abuso da mídia no uso das fontes anônimas – prática disseminada irresponsavelmente, por ironia, graças ao sucesso das reportagens da dupla Bob Woodward-Carl Bernstein no próprio “Washington Post”, na década de 1970.

A primeira coisa que o “Post” e a “Newsweek” teriam de reconhecer publicamente – em vez de fazer as retratações ditadas pelos interesses promíscuos da cúpula de sua corporação – era sua própria responsabilidade na proliferação dessa prática. Graças precisamente a ela, Bob Woodward chegou à alta hierarquia da redação do “Post”, além de se tornar autor best-seller.

E mais: existe diferença grande entre a maneira como as fontes anônimas foram usadas por Woodward no caso Watergate e o abuso posterior, também da parte dele. Abuso não só no jornal, mas também nos livros. Fontes anônimas são agora a marca de tudo o que faz. E nenhum escândalo é maior do que usá-las para disseminar o que interessa ao governo – o que equivale, na verdade, a “plantar” informações suspeitas.

Boa receita de mau jornalismo

“Bush em guerra” e “Plano de ataque”, últimos livros dele, são um escândalo de manipulação de autor submisso ao poder. No primeiro as fontes anônimas só faltam canonizar Bush. Não se diz, por exemplo, que ele executava plano feito pelos “neocons” em 1991. É um livro oficial baseado em fontes anônimas. Em “Plano de ataque” o autor disse ter entrevistado 75 formuladores de decisões. Quantos identifica? Três, entre elas Bush.

Bem vindo ao novo jornalismo americano – uma piada. Caso emblemático é o da notícia “plantada” por fonte anônima da Casa Branca identificando ilegalmente uma

agente da CIA casada com o embaixador Joseph Wilson que embaraçara Bush. Receberam a “dica” Bob Novak (CNN, “Post”), Judith Miller (“Times”), o picareta Jeff Gannon (credenciado na Casa Branca para ajudar o governo) e outros.

Jornalistas “protegeram” a tal fonte (alguém da intimidade de Bush, talvez Karl Rove, que poderia ser punido) fingindo ser isso princípio do bom jornalismo. Não é. Profissional de imprensa pode até usar tais fontes, mas tampando o nariz. Nuns poucos casos são “whistle blowera”, nos outros trocam favores com o jornalista, que aumenta o salário e o prestígio com elas. Deviam ser apontados à execração pública.