Por Kátia Marko, do Núcleo Piratininga de Comunicação, em seu blog Memórias da Rebeldia
Os movimentos sociais não ocorrem por acaso. Eles têm origem nas contradições da sociedade, o que leva parcelas ou toda uma população a buscar formas de conquistar ou reconquistar espaços democráticos negados pela classe no poder.
No Brasil, os dez anos que sucederam o Ato Institucional n. 5 geraram extraordinários e heróicos espaços de resistência social. O AI-5 resultou da inconformidade das alas mais à direita do sistema militar com as manifestações de oposição ao regime do movimento estudantil e políticos civis que haviam formado uma frente ampla reunindo desde o deposto presidente João Goulart até o seu mais feroz adversário, o ex-governador do Rio de Janeiro Carlos Lacerda. Aquele foi o instrumento jurídico que possibilitou ao governo fechar o Congresso Nacional, suspender garantias constitucionais e instalar efetivamente no país a Doutrina da Segurança Nacional formulada pela Escola Superior de Guerra (ESG).
A Doutrina da Segurança Nacional partia do princípio de que a sociedade era vulnerável e a democracia frágil para enfrentar o seu insidioso inimigo – o comunismo internacional. Assim, justificava-se qualquer brutalidade cometida pelo governo para “salvar” a família brasileira e seus valores “humanistas e cristãos”. Sequestros, torturas, perseguições variadas tinham sua legitimidade assegurada com base na “guerra” que o sistema travava contra a guerrilha urbana e rural.
O Brasil conheceu raros intervalos democráticos, um deles foi o período entre a posse de João Goulart e o golpe militar de 1964. A história do país foi marcada por sua longa tradição de arbítrio político imposto pelas classes dominantes, disfarçado, aqui e ali, pela vigência de legislação destinada a, teoricamente, preservar os direitos individuais e políticos. Em Vida e Morte da ditadura – 20 anos de autoritarismo no Brasil, Nelson Werneck Sodré explica que nesse período, caracterizado pelas acesas controvérsias, pela acirrada luta política, pelo afloramento e desenvolvimento das contradições, pelo questionamento democrático de soluções, as forças reacionárias e o imperialismo compuseram-se e operaram esforços organizados e sistemáticos para desferir o golpe definitivo.
Eles começaram pelo controle dos meios de comunicação de massa, através dos quais exerceram intensa propaganda de seus objetivos, ao mesmo tempo que mobilizavam a opinião contra o regime e aqueles que o encarnavam. Essa ação pertinaz e continuada visou principalmente as Forças Armadas para coloca-las em condições de intervir no momento escolhido. A reação, assim alimentada e conjugada ao imperialismo, montou, desde logo, um instrumento adequado à luta eleitoral, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). Este financiou centenas de candidatos nos pleitos eleitorais e tornou-se uma força política mais poderosa que os partidos.
A história do IBAD consta dos arquivos da Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou a sua estrutura e os seus processos. A reação vitoriosa em 1964 cassou os mandatos de todos os parlamentares que haviam tido a ousadia de tentar apurar aquelas ações. Em seguida, uma vez que a intervenção do imperialismo nas eleições resultara em fragorosa derrota, a reação criou outro instrumento, o Instituto de Pesquisas e Estudos Social (IPES), destinado a articular, para ações conspirativas e para todo tipo de iniciativas, os elementos capazes de resistir à pressão democrática e a servir os propósitos golpistas em andamento.
A história do IPES, organizado por banqueiros e empresários e comandado na prática por agentes da CIA, está também contada em detalhes, pelo desvendamento de seus arquivos, no livro de René Armand Dreifuss, intitulado “1964: a conquista do Estado”. Reunindo políticos, empresários e militares, o IPES constituiu a peça principal para a montagem da operação que, deflagrada em 1964, estabeleceu a ditadura militar e impôs ao país, com o AI-5, um regime fascista sob o qual não só as franquias democráticas desapareceram como foram realizadas operações destinadas a estabelecer o controle econômico, político e militar do país. Tudo isso sob o comando direto dos Estados Unidos, a que se submeteram, como de praxe, os elementos nacionais ligados à conspiração. Estabelecida a ditadura fascista e gerado o “modelo brasileiro de desenvolvimento”, também apelidado, pela propaganda organizada, de “milagre econômico”, foi estruturado um aparelho de Estado apto a manter a política adotada, impondo-a a toda a nação, vencidas as últimas resistências.
Naqueles anos duros, a mobilização social não foi neutralizada apenas pela censura e pela repressão, mas também por toda a máquina publicitária montada pelo poder vigente e pela euforia do modelo capitalista que combinava consumismo, exportação, petróleo barato e modernização acelerada. A Rádio Nacional, o veículo oficioso dos tempos do populismo, foi substituída pela Rede Globo como novo símbolo de consumo e padrão cultural da sociedade de massas da fase do capitalismo transnacional. Como a classe média podia comprar, atendendo aos apelos diretos e indiretos da TV, não se incomodava muito com a violência que se abatia sobre um punhado de “subversivos”.