Quem foi morar nas favelas do Rio de Janeiro foram os herdeiros da senzala ou os herdeiros da seca no nordeste, trazendo na bagagem suas culturas.
De Rafael Tatemoto /Brasil de Fato
Autor de sucessos como “Endereço dos Bailes” e “Rap das Armas” ao lado de seu irmão Júnior, MC Leonardo se tornou uma das grandes vozes defensoras do funk enquanto cultura a ser respeitada. Nessa entrevista ao Brasil de Fato, ele fala sobre sua carreira, a perseguição ao estilo musical e da situação social nas favelas.
Brasil de Fato – Para começar, gostaria que você falasse um pouco da sua formação.
MC Leonardo – Eu nasci sem a cabeça do fêmur, fiz 16 cirurgias no quadril, o que me dificultou ter estudo formalizado. Tenho só o primário. Fui salvo pelos livros. Lia tudo que me vinha à mão. O primeiro eu nem sabia que era um clássico, era “Os Sertões”, em 1986, eu tinha de onze para doze anos quando comecei. Foi um paciente que esqueceu no hospital e eu fiquei com ele, esperando que ele fosse buscar.
Brasil de Fato – E a música como entrou na sua vida?
Meu interesse surgiu da ligação do meu pai. Ele tocava triângulo e cantava, gravou dois discos com o Jackson [do Pandeiro]. Minha infância foi baião, xaxado, coco.
Brasil de Fato – E da música nordestina ao funk?
Eu tinha minha cultura, mas vivendo outra realidade. As músicas falavam da seca, do pau de arara, coisas que não vivenciava. Em 86 surge a coletânea “Só Pagode”, endossado pela Beth Carvalho. Eles começaram a cantar aquilo que eu estava vivendo. A chuva, o barracão, telha de zinco. Foi amor à primeira vista. Uma paixão pelo samba de raiz que segue até hoje dentro de mim.
Em 89, minha irmã comprou um disco chamado “Super Quente”. Tinha uma música com uma batida que eu achei muito legal. Depois veio o “Funk Brasil n. 1”. Eu não ia para o baile, mas disse: “a primeira oportunidade que surgir eu vou”.
Brasil de Fato – Como foi seu primeiro baile?
92 foi ano da minha vida. Eu opero no começo do ano. No final, eu entrei no baile pela primeira vez e me inscrevi em um concurso. Eu nunca fui de puxar bonde, de dançar passinho. Minha paixão pelo baile foi a comunicação. Eu imaginava outra coisa. Eu nunca pensei que eu iria encontrar meu vizinho cantando no palco. Eu olhei e disse: “quero fazer isso também”. Participei de dez concursos e fui campeão de nove.
Meu irmão e eu passamos a saber que existiam outros bailes. Conhecemos Borel, Canta Galo, Pavão Pavãozinho através do funk. O que está no “Endereço dos Bailes”. Depois fizemos o “Rap do ABC” só com nomes das favelas. Fizemos então o “Rap das Armas” que foi sucesso, até hoje, no mundo todo, depois do [filme] Tropa de Elite.
Brasil de Fato – Foi nessa época que vocês passaram a fazer sucesso?
Em 95 a gente assina com a Sony. Fizemos o primeiro clipe de funk no Brasil e primeiro disco de uma dupla de MCs, “De baile em baile”. No mesmo ano teve o “Rap Brasil”, uma coletânea que vendeu 270 mil cópias, a gente começou a frequentar o Show da Xuxa e a conhecer o Brasil inteiro. Eu que nunca tinha ido na região dos lagos, comecei a ir para aeroporto sem nem saber para onde ia.
Brasil de Fato – O que te inspirava e inspira a compor?
Eu sou casado há vinte anos. Se eu dissesse que o amor não tem importância na minha vida, estaria mentindo. Mas na hora de escrever, a única coisa que me inspira é a inquietação do mundo. Desde quando eu comecei. Meus discos tem sempre alguma coisa nesse sentido.
Brasil de Fato – Da onde acha que vem essa sensibilidade social?
Foi a garra dos meus pais nos anos 70. Do mutirão, a organização da qual eles fizeram parte e que impediu a Rocinha de ser removida. Eu nasci na Rocinha com barraco de madeira. Eu convivi com a participação da Igreja, colégio e associação de moradores nessa luta. Vivi nessa fase, de ajudar construir casas, se livrar das enchentes.
Brasil de Fato – E o que mudou desde então?
Existe uma facilidade maior, mais linha de crédito, mais opções de consumo. Existia uma quantidade muito inferior de produtos. Biscoito recheado, danone, só tinha um. O acesso era difícil. Mas a gente não pode associar desenvolvimento apenas ao consumo.
Os serviços públicos pioraram. A ambulância me pegava em casa para tirar ponto no hospital. Eu tinha seis refeições mesmo. Havia assistente social, que me tratava como gente. Ela que me internava, ia duas vezes por dia me visitar no meu quarto. Essa figura sumiu, não sei por onde anda. O que deveria ter, e não tem, dentro dos colégios, presídios e hospitais é assistente social. Para ter ascensão social tem que ter informação e direitos básicos.
Brasil de Fato – Depois de vinte anos, como você definiria o funk?
Nós fomos criados no meio do improviso. Nossa água, nossa luz, nosso esgoto foram improvisados. Esse improviso se reflete na música. Eu definiria funk como música eletrônica brasileira. Você não encontra esse tipo de som em lugar nenhum do mundo, uma criatividade muito grande, que se renova a cada minuto, mesmo com toda perseguição.
O funk tem uma influência de batida norte-americana, mas o restante é tudo nosso. O frevo tá ali. Moleque dança frevo, mas chama de passinho. Em cima de tambor de macumba. A ciranda de roda tá ali, na forma como a gente canta [cantarola “eu só quer é ser feliz”]. É uma cultura nacionalizada mesmo, todas as culturas do Brasil se entranham no funk. Quem foi morar nas favelas do Rio de Janeiro foram os herdeiros da senzala ou os herdeiros da seca no nordeste, trazendo na bagagem suas culturas.
Brasil de Fato – Como você vê o funk ostentação? Não falta crítica social?
Dizem que nega a realidade. O “ter” pode não ser real, mas o “querer” é real. Ele querer uma loira, um charuto e champanhe é real. Cultura e educação podem e, na minha opinião, deveriam andar juntas, mas a cultura é um termômetro do quanto um povo está ou não educado. Gostaria muito que quando falasse de sexo, a letra falasse de camisinha, de não engravidar. Mas não é isso o que o moleque tá vendo.
Quem tinha que fazer algo pelo social, era o sertanejo, que se diz universitário [risos]. Vai ser o funk, que só fez até o primário?
É a mesma coisa com proibidão. Se os bailes tivessem nos bairros, como era antigamente… Os alvarás dessas casas foram cassados. O baile foi pra boca de fumo. Foi nesse cenário, de fuzil, Redbbull e Nike, que surgiu o proibidão. Ninguém conversa de sexo em lugar nenhum com essa molecada. O funk virou a grande parada. Agora vem e fala que tem que acabar com isso?
Brasil de Fato – Você falou em perseguição, foi disso que surgiu a ideia da Apafunk?
Eu vi o surgimento do Bonde do Tigrão e do Naldinho. Fui atrás dessa galera para ver se os contratos dos artistas estavam melhorando. Descobri que eles tinham assinado piores do que eu em 95. Então a luta começa pela questão do direito autoral. Naquele momento, comecei a pensar o que fazer e veio a ideia de montar a Apafunk.
Fui pesquisando, vi que o funk não era reconhecido como cultura pelo Estado. Percebi que existia incentivo cultural, mas não para o funk, então somente com uma lei que reconhecesse como cultura permitiria que os bailes voltassem aos bairros. A luta nunca foi pra todo mundo gostar de funk. Eu exijo respeito, como qualquer outra cultura
Brasil de Fato – A volta dos bailes é a grande demanda da Associação?
Acabaram com os bailes na favela. Houve uma lei de 2007 que proibia o funk, do deputado Alvaro Lins (PMDB). Nós conseguimos revogar e implementar a Lei do Funk, que o reconheceu como cultura. Foi uma grande vitória. A partir disso começamos a reivindicar políticas públicas. Tivemos vários avanços. Mas a primeira angústia ainda é trabalhar sem saber se semana que vem vai continuar. O cara tem uma equipe de som, o baile lotado, mas não tem certeza nenhuma, porque a polícia vai arrumar uma maneira de te tirar dali. Isso não é negligência, é perseguição.
Brasil de Fato – Da onde vem essa falta de incentivo?
O que acontece com o funk é preconceito racial. Além disso, o Estado brasileiro privatizou a cultura. Deu às empresas o poder de dizer para onde vai o dinheiro. A marca quer vender produto. Ela usa a cultura como vitrine. Vai sobrar incentivo para o Leblon e vai faltar para a Cidade de Deus. É simples. “O que a Cidade de Deus produzir, eu não quero minha marca envolvida com aquilo.”
Brasil de Fato – E as UPPs nesse cenário?
Os bailes não voltaram, pelo contrário. Sou totalmente contra essa política. Tá colocando jovem para matar jovem. Os policias são moleques de vinte e poucos anos. O efeito disso é a atrocidade. O estado brasileiro precisa legalizar todo e qualquer tipo de substância química. Só assim, não existe outra maneira de acabar com o tráfico. O estado diz que quer acabar com as armas sem acabar com o tráfico, isso é uma besteira. Morre sempre inocente. Não consigo entender isso.