(Sérgio Domingues) 

Sou daqueles que torceram e ainda torcem o nariz para a contratação de Duda Mendonça para a campanha do agora presidente Lula. Mas tenho que dar o braço a torcer. O cara acertou na mosca. O problema é que as fragilidades do discurso genérico vão ser exploradas pela mídia quando chegar a hora certa. E aí, temos que estar prontos para responder.

Os acertos de Duda: O patrimônio político do PT

Comecemos pelos fatores que Duda Mendonça encontrou pela frente. Em primeiro lugar, nestes mais de 20 anos de existência, o PT formou um patrimônio político muito sólido e definido. Um patrimônio de compromisso com a democracia participativa, com os movimentos popular e sindical, com o funcionamento partidário e programático, com a ética e a honestidade administrativas. Tudo isso com o socialismo como pano de fundo cada vez mais difuso e distante da discussão na prática cotidiana.

Essa trajetória começou foi acompanhada pela população. O povo viu o PT ousar lançar um candidato metalúrgico, grevista, radical, para o governo estadual de São Paulo nas eleições de 1982. Viu esse partido capitanear o desafio à ditadura militar que significou o movimento pelas Diretas e depois essa mesma agremiação recusar-se a compactuar com a traição que significava comparecer ao Colégio Eleitoral. O PT denunciou o Plano Cruzado contra a maré dos fiscais de Sarney. Apoiou a maior greve geral do país, em 1989, e no mesmo ano voltou a ousar. Colocou seu candidato metalúrgico para disputar com o playboy collorido no segundo turno das primeiras eleições presidenciais em 30 anos. Foi o PT que de novo liderou as grandes manifestações contra Collor, que levaram à sua renúncia. O teimoso e determinado partido novamente remou contra a correnteza e se recusou a participar do governo Itamar. O mesmo governo que iria parir o Plano Real para eleger FHC. E apesar do enorme apoio popular ao Real, novamente o Partido dos Trabalhadores se coloca na oposição por dois longos e terríveis mandatos tucanos.

A oposição sistemática e teimosa, no entanto, não ficou no discurso. Do contrário, o partido da estrela se veria condenado ao posto de inspetor de qualidade da pobremente qualificada democracia nacional. Assumiu muitas prefeituras e alguns governos estaduais. Aos trancos e barrancos, manteve uma linha coerente de administração limpa, transparente (na medida do possível), voltada para os pobres. Acabou mostrando (com entusiasmo demais, às vezes) que não tentaria incendiar as instituições, mas que tampouco se deixaria levar pelos expedientes políticos tradicionais.

Lula não é o PT, mas é seu símbolo mais acabado e visível

Por outro lado, havia Lula. Gostemos, queiramos, concordemos ou não, Lula é a cara do PT. Lula não resume o PT, mas é seu símbolo mais acabado e visível. E sua condição de operário e nordestino. De liderança sem a instrução formal cobrada pelos bacharéis bandidos que sempre governaram o país. Com sua voz grossa, enfezada e indignada com a realidade triste do país, Lula nunca deixou de ser radical. Não, para o povo. Muitos de nós discordamos das posições de Lula no interior do PT ou da esquerda. Mas inúmeras vezes defendemos Lula de críticas conservadoras, preconceituosas, caluniosas. Nestes mais de 20 anos de vida política, dificilmente alguém do povão acusou Lula de ser moderado, pelego, traidor, liberal. Ao contrário, as críticas mais comuns sempre foram as de ser analfabeto, incendiário, baderneiro, grevista, vagabundo. E todos nós da esquerda, do mais moderado membro da Articulação ao mais convicto revolucionário do MST, nunca deixamos de combater esse tipo de crítica. Até que cada uma daquelas acusações foi ficando no caminho, sem que as críticas de esquerda ganhassem força.

Vejam bem, não estou dizendo que a trajetória de Lula foi impecável. Que concordo com os rumos que ele e a direção do PT tomaram. Não. Estou dizendo que a cara do PT é o Lula. E que os dois construíram uma imagem que, apesar de perder muito de seu radicalismo, continuou significando mudança, apego a princípios, intransigência com a corrupção e a injustiça.

Os acertos de Duda: Muita música, sorrisos e pouca política

É aí que entra Duda Mendonça. Diante de um tal patrimônio simbólico, o que fez Duda? Usou música, imagens, filmes bonitos, muitos sorrisos de mulheres e crianças, fotografia e iluminação perfeitas. E é claro, um Lula sorridente, calmo, bem vestido. E pouco, muito pouco, discurso político. Afinal, para que lembrar que o PT fez isso e aquilo? É contra isso ou aquilo? Todo mundo sabe. E o discurso político? Este ficou o mais genérico possível. Confundiu-se com os de outros candidatos. Mas não fez mal. Com a cara do Lula, ninguém, querendo ou não mudanças, duvidaria de que uma vez presidente tudo mudaria. E como o eleitorado buscava a mudança, Lula venceu.

O poder dessa tática fica claro quando vemos como a grande mídia respondeu a ela. A grande mídia fracassou na tentativa de derrotá-la. Primeiro, quis mostrar que o discurso do PT/Lula era um e a prática, outra. Que estavam escondendo o jogo. Lembravam as posições sobre a dívida externa, a ALCA, reforma agrária etc. Diante disso, os membros da candidatura simplesmente respondiam: “Mudamos. Ficamos mais moderados e maduros, mas continuamos achando que é preciso pensar no pobre, na educação, na saúde etc”. E a população ficou satisfeita. Sabe por que? Porque o discurso e a prática do PT tem sido essa mesma nas prefei

turas, governos estaduais e entre a maioria de seus parlamentares.

Depois disso, a mídia tentou dizer que o PT não era mais aquele. Que perdera a autenticidade. Se era para ser mais do mesmo, melhor ficar com o mesmo. Melhor ficar com Serra. Também não funcionou. E de novo porque entre o discurso mais agressivo de um candidato tucano com medo de ser identificado com FHC e Lula, que jamais seria identificado com o presidente, não havia competição possível. Lula era a cara da mudança por mais que moderasse seu discurso e envergasse ternos bem cortados.

Mas Duda não caiu do céu. Não desvirtuou ou escondeu o radicalismo do PT.

A verdade é que o PT mudou muito. Que há muito tempo busca caminhar para o centro do cenário político. Que optou por alcançar o poder mais pelas vias institucionais e menos pelo movimento social. Compartilho com muitas companheiras e companheiros uma grande preocupação com essa trajetória cada vez mais moderada. Mas, não vamos colocar isso em pauta aqui. O que está em discussão é a tática eleitoral do PT no que diz respeito à comunicação. E desse ponto de vista a atitude de Duda foi a de aproveitar o material que já existia da maneira mais inteligente possível.

Além disso, não podemos nos esquecer da situação objetiva. Durante a tenebrosa Era FHC, o desemprego triplicou e os pobres passaram de 47 milhões para 53 milhões. A privatização do sistema elétrico e das telecomunicações não só aumentou os custos dos serviços para a população, como piorou sua qualidade. Coroando tudo isso, nos deparamos com índices inflacionários cada vez mais altos, mostrando que mesmo o único trunfo tucano teve fôlego curto e pode agravar ainda mais o já trágico quadro atual. Um quadro como esse completou as condições necessárias para a vitória petista.

Pois bem, Lula eleito, o que faz a mídia?

Depois de tentar em vão bombardear a tática publicitária do PT, a mídia começa a desqualificar politicamente a vitória de Lula. Alguns órgãos da grande imprensa atribuem a eleição do petista a um pretenso messianismo, como a Folha de São Paulo. Outros, insinuam traições e torcem descaradamente pelo fracasso do governo, caso da Veja. E outros ainda, são mais sutis. A revista Época de 6 de janeiro diz que o povo está mais próximo do poder e Isto é da mesma semana vai mais longe e diz que o povo já está no poder.

O que está por trás de cada uma dessas táticas. Não há nada menos messiânico que a vitória de Lula. Um messias é alguém superior que veio nos salvar. O que acontece e sempre aconteceu com Lula é o contrário. Sempre teve dificuldades para se eleger porque se identifica demais com as pessoas comuns. E agora foi eleito exatamente por isso. E a Folha sabe disso. Mas o que quer fazer é mostrar a eleição de Lula como algo religioso, primitivo, ligado a crenças populares. Não o resultado de lutas, contradições e da própria situação terrível em que FHC deixou o país.

Veja está tentando se credenciar como veículo da oposição mais feroz. Sua capa desta semana diz “Lula-de-mel. A partir de agora, começa a cobrança.” A revista aposta na rápida frustração da população para preparar o caminho para um futuro governo que enterre qualquer perspectiva de colocar novamente a esquerda na presidência do país.

Isto é e Época: tática mais sutil

Quanto a Isto é e Época, a tática é mais sutil. Querem atribuir à vitória petista um alcance que não tem. Dizer que o povo está mais próximo do poder, ou já está nele é falso. Até mesmo dizer que o PT, estando no governo federal, está no poder é duvidoso. De um lado, há uma máquina governamental moldada por séculos de mando autoritário e voltado para interesses particulares. Mas não fica só nisso. É preciso lembrar a contribuição tucana para esse quadro. Para citar apenas alguns exemplos, lembremos a independência de que gozam agências reguladoras, como Aneel, Anatel em relação até mesmo aos ministérios a que deveriam responder e a pretendida e perigosa autonomia do Banco Central. Assim, de um lado alimenta-se a ilusão de que o governo petista pode fazer e acontecer. De outro lado, quando chegar a hora de atacar o novo governo, serão responsabilizados governo e povo como se fossem uma coisa só. E surgirão acusações do tipo: “tá vendo no que dá colocar o povo no poder”.

Tudo isso também vale para TV e rádio. Boris Casoy faz mais a linha de Veja. O Jornal Nacional faz o gênero isenção e respeito (Aliás, é no mínimo estranho que o Jornal Nacional tenha abandonado sua tradicional linha de apoio ao governo exatamente nas eleições em que se deu a conquista da presidência da República pelo PT). E a maioria dos outros veículos tratando a eleição como a tomada do poder pelo povo. Ou seja, como a tomada do poder pelo povo. E aguardando ansioso a hora em que todos, governo, PT, Lula e “o povo” quebrem a cara.

O preço a ser pago pela tática vitoriosa

O fato de que Duda Mendonça tenha sido bem sucedido do ponto de vista da tática eleitoral não impede que o governo eleito seja vítima dos at

aques da grande mídia. Ao contrário, o discurso genérico, o silêncio sobre temas políticos e a ênfase na publicidade sorridente ganhou a eleição, mas deixou um preço a ser pago. O clima de “união nacional” presente na imprensa escrita e falada pode criar dificuldades no momento em que o governo petista precisar colocar o dedo em algumas das muitas feridas de um dos  países mais desiguais do mundo. Este é o preço da tática eleitoral de Duda. Os poderosos não vão ceder em seus interesses, até porque nunca o fizeram em 500 anos de história. Mas eles vão querer inverter a lógica. Vão dizer que quem está sendo intransigente (ou voltou a sê-lo) é o governo dos barbudos. Que o “Lulinha paz e amor” finalmente está mostrando suas garras.

Diante disso, que faremos? Combater a grande mídia sem abrir mão da crítica fraterna

Nós, da mídia alternativa, militantes/profissionais do movimento sindical e popular, o que podemos fazer? Nosso papel será o de denunciar os ataques da grande mídia. Buscar compensar as desinformações e distorções dos jornalões, TV e rádio. O problema é que continuamos com instrumentos tímidos perto do poderio da grande mídia. Por isso, é urgente aproveitar a situação favorável para lutar para que o monopólio dos meios de comunicação comece a ser questionado. Por outro lado, um governo como o de Lula com certeza cometerá muitos erros. Tais erros serão objeto de ataques de todos os lados. Inclusive, do nosso lado. O melhor caminho não será defender o governo a todo custo, ignorando erros que serão perfeitamente normais. Ao contrário, precisamos continuar a exercer a crítica que for necessária, até para ajudar a corrigir rumos e escolhas. E a melhor maneira de garantir que nossa crítica será fraterna é combiná-la com a denúncia dos ataques da grande mídia. Com isso, podemos apontar erros e equívocos sem fazer o jogo do inimigo.