Por João Quartim de Moraes, em 4 de maio de 2004

Na Assembléia Legislativa de Minas Gerais, intervindo por ocasião de um dos muitos debates que marcaram os quarenta anos do golpe de 1964, enfatizei a fortíssima contribuição da TV, jornais, rádios para a nefasta vitória da ofensiva contra-revolucionária que derrubou João Goulart e estuprou a Constituição vigente. Um deputado de direita perguntou-me, em tom polido, como convém a parlamentares, se “ao atacar a imprensa livre” eu não estaria “sugerindo que adotássemos por aqui o jornal Granma como leitura obrigatória e exclusiva”. Respondi-lhe, em síntese, que estávamos discutindo a contra-revolução brasileira e não a revolução cubana, mas que, de qualquer modo, entre Granma e o cartel mediático da máfia cubana de Miami eu não hesitaria uma fração de segundo. Disse também que aquilo que ele chamava “imprensa livre” baseava-se não na liberdade de expressão da maioria, mas na liberdade de impressão de um punhado de milionários proprietários dos grandes meios privados de comunicação social (ou mídia, como se diz em latim de texano).

A liberdade de exprimir é boa, mas é manipulada, em escala social, por quem tem o dinheiro para imprimir. Basta, com efeito, dispor de um mínimo de sentido crítico para constatar que o cartel mediático do capital informa como quer e intoxica quando quer, isto é quando os donos querem. A eficácia da intoxicação mediática, como de qualquer outra droga, depende das condições em que é administrada e da resistência que lhe contrapõem os atingidos.

Nem os mais firmes e lúcidos militantes democratas, anti-imperialistas e socialistas estão inteiramente imunes à diuturna manipulação dos fatos, antes de mais nada porque os milionários e seus cães de guarda dispõem do monopólio da transmissão em larga escala das “notícias”. Mas resistir é preciso e é possível. Um exemplo notável: em 1984, com uma desfaçatez que só esqueceram os de memória curta, o truste audiovisual do senhor Roberto Marinho censurou sistematicamente todas as notícias sobre o extraordinário movimento cívico desencadeado em janeiro daquele ano, para exigir eleições presidenciais diretas já, isto é, em novembro do mesmo ano.

Naquele momento, entretanto, a inegável capacidade “global” de manipular a opinião pública mostrou-se inoperante. Após a grandiosa manifestação do dia 10 de abril de 1984 no Rio de Janeiro (cerca de um milhão de pessoas clamando nas ruas pelas “diretas já!”), coube o povo de São Paulo realizou a maior mobilização cívica de sua história. Talvez um milhão e meio de pessoas (as avaliações, nesses casos, variam segundo o ponto de vista político do observador) concentraram-se no Viaduto do Chá e no Vale do Anhangabaú no dia 16 de abril.

Revoltados com a acintosa cortina de silêncio que os “comunicadores” a serviço do senhor Roberto Marinho erguiam em torno de um movimento que se estendera por todo o País e ganhara a adesão das forças mais dinâmicas da sociedade e mais decisivas para a instauração da cidadania democrática (a juventude estudantil, o movimento sindical, os intelectuais), os manifestantes proclamavam em coro imenso, muitas vezes reiterado, o fato novo que não estava “pintando na tela” do império global da comunicação: “O povo não é bobo! Abaixo a Rede Globo!”

A indignação cívica contra a indústria da mentIra do sr. R. Marinho comprovou, num momento grave e decisivo da vida nacional, que a capacidade de um indivíduo ou de um punhado de indivíduos de decidir, por serem donos de um grande meio de comunicação social, o que vira e o que não vira notícia, encontra seus limites na capacidade de mobilização dos cidadãos.

Entretanto, a Rede Globo, que além de tampouco ser boba, é um poço sem fundo de hipocrisia friamente meditada, esperou a poeira assentar. Sabia que as grandes mobilizações cívicas, como as marés, têm seu fluxo e seu refluxo: tudo estaria consumado no dia 25 de abril, quando a Emenda Dante de Oliveira seria votada pelo Congresso. Rejeitada a Emenda, o público ávido por novelas água-com-açúcar faria esquecer o trabalho sujo de desinformação sobre a campanha pelas “diretas já!”.

Com efeito, menos de um ano depois de haver sido estrondosamente vaiada no Vale do Anhangabaú, a Rede Globo, já perfeitamente identificada com a auto-intitulada Nova República e com o espertalhão que um nefasto concurso de circunstâncias tinha conduzido ao exercício da presidência, podia cacarejar: “o que pinta de novo pinta na tela da Globo”. Principalmente quando o novo era politicamente inócuo ou, sobretudo, se servia à plutocracia nacional e imperial.

A eficácia dos trustes da intoxicação mediática, como a de quaisquer outros, repousa no controle do mercado consumidor.  Disputam público, mas não perdem de vista que só disfrutam plenamente da posição de monopólio na medida em que preservam certa unidade: lobo não come lobo. Por isso, além de estarem constantemente se auto-elogiando, os porta-vozes do grande capital encontram singular satisfação em agarrar e puxar o saco uns dos outros.

Exemplo expressivo, já que concerne a figurões pertencentes à alta cúpula da máfia mediática, nos foi oferecido por Joelmir Belting (cuja carreira deslanchou sob a proteção de um padre milagreiro de Tambaú, para culminar na confortável posição de mais bem pago conselheiro Acácio do jornalismo econômico) em sua coluna de O Estado de São Paulo (11-X-1991). Ali proclama que “a indústria brasileira da comunicação, criativa e obstinada, tem tudo a ver com a consolidação da democracia no Brasil: promoveu a campanha das eleições diretas, mobilizou a opinião pública para a feitura da nova Constituição, despertou a sociedade para a questão ecológica e passa a concentrar baterias na guerra santa contra a ineficiência e a corrupção”.

Não sabemos se o inegável talento para  condensar tantas mentiras numa só frase é dele ou do sr. Roberto Civita, a quem ele atribui senão a letra, ao menos o espírito do auto-elogio, proferido por ocasião de homenagem (lobo só homenageia lobo) recebida em Nova Iorque. O descaramento mais safado, colocar a Rede Globo na vanguarda da “campanha das diretas”, é de ambos. Quanto às qualidades jornalísticas do plutocrata do truste Abril, Mino Carta, denunciando contundentemente, em corajosa e incisiva entrevista ao grupo AOL da Internet (“A mídia implorava pela intervenção militar”, por Adriana Souza Silva, da Redação AOL, 26/3/2004), aquilo que o tartufo de Tambaú chama “a indústria brasileira da comunicação”, comparou-as às do dono da Folha: “entre o Otavio (Frias, dono da Folha) e o Roberto (Civita) é u

m páreo duro para ver quem é o mais imbecil…”

Não apenas o grupo mediático da “família” Marinho ou de outras “famílias” inequivocamente de direita, mas também a solertíssima Folha de São Paulo tem o rabo preso até o cabo à ditadura militar e ao imperialismo. Mino Carta, um jornalista que honra o ofício, lembrou, a propósito de colaboração com a ditadura, que a Folha não se limitou a apoiar o golpe de 1964, mas até emprestou sua C-14 [carro tipo perua, usado na distribuição do jornal] para recolher torturados ou pessoas que iriam ser torturadas na Oban [Operação Bandeirante]”. Por prestar pequenos serviços especiais como este, nunca foi censurada, exercendo sem estorvo a liberdade de impressão…