(Sérgio Domingues )
Tiros em Columbine é surpreendentemente bem feito. Tem ritmo, imagens, ironia e um belo esculacho dos valores conservadores presentes na sociedade norte-americana. É um raro retrato de doença social. Deve ter escandalizado muitos dos habitantes estadunidenses e feito outros tantos se sentirem muito mal.
Tiros e mísseis em Columbine
O filme procura descobrir o que levou dois adolescentes a disparar armas no interior de uma escola na cidade de Columbine, no estado de Colorado, em 1999. Os dois estudantes mataram 12 colegas e um professor antes de cometer suicídio. Na mesma cidade ficam as instalações da Lockheed, produtora de aviões e armamentos. Também há uma base aérea na localidade e o pai de um dos garotos que fez os disparos lutou na guerra do Golfo pilotando um bombardeiro. Uma cena irônica é a de Moore entrevistando um representante da Lockheed, em que este afirma não ver ligação entre a presença da empresa e os tiros na escola. Atrás do entrevistado, a carcaça de um enorme míssil nuclear.
Quando perguntados sobre as razões para os atos dos garotos, vários membros da comunidade local responsabilizam os filmes e vídeo-jogos violentos, a TV e Marylin Mason, o pop-estrela mais bizarro que já apareceu no planeta. Seguindo essas pistas, o diretor descobre que cada um desses elementos está presente em outras sociedades. Japão, Canadá, Alemanha, França são países em que violência, mídia apelativa e rock bizarro também estão presentes. Mas ao contrário do grande império do norte, essas sociedades apresentam índices de criminalidade muito baixos. Ao deslocar a investigação para o alto índice de armamento da população norte-americana, Moore vê sua hipótese negada no Canadá, em que possuir armas também é bastante comum, sem o correspondente aumento de mortes violentas.
Chalton Heston é a prova viva da imbecilidade branca
De qualquer modo, o fenômeno do armamento nos Estados Unidos é assustador. O documentário dá a devida atenção à Associação Nacional do Rifle, presidida pelo ator Charlton Heston e defensora do direito ao armamento individual. Logo após as ações dos garotos de Columbine, a Associação organizou um comício na cidade para reafirmar sua defesa da livre comercialização de armas e munições. E fez o mesmo quando um menino de seis anos matou sua colega de escola com a mesma idade utilizando uma arma que pegou na casa do tio. Isso aconteceu em Flint. Uma semana depois a Associação realizou seu comício na mesma cidade. Trata-se de uma organização com forte parentesco com a Ku-Klux-Klan e mostra ter o mesmo nível de pobreza mental. Basicamente, sua justificativa para a posse de armas é a de enfrentar malfeitores. E estes são por eles identificados como pessoas não brancas. Perguntado sobre as razões para tanta violência nos Estados Unidos, Heston responde que “há muita mistura étnica em nossa sociedade”. A entrevista aparece no final do filme e faz de Heston a prova viva da imbecilidade branca que Moore denuncia em seu livro Estúpidos Homens Brancos, recém lançado no país.
Os absurdos vão se sucedendo. Uma cena mostra um cão que foi responsabilizado por um tiro na perna de seu dono. É que o animal-proprietário amarrou um rifle no animal-propriedade para fazer uma foto. Ao tentar ajeitar a arma, o rifle escorregou e atingiu o animal-proprietário. O absurdo aumenta quando Moore faz um policial explicar que o animal não tem culpa do que aconteceu.
Nós também ficamos encharcados pelos valores ianques
Mas, não são apenas os habitantes da terra do Tio Sam que se vêem afetados pelo filme. Pode ser uma impressão pessoal, mas acho que os espectadores brasileiros (talvez, os latino-americanos) também devem sentir certo desconforto. Afinal, a maioria de nós passou boa parte da vida a encharcar-se com os valores ianques. Desenhos animados, filmes, músicas. Tudo isso nos acostumou a ver na sociedade norte-americana um modelo. De repente, na sala escura do cinema, uma seqüência mostra o absurdo dessa idéia. É o caso de um anúncio televisivo de armas de brinquedo exibido no filme de Moore. Com imagem e som que indicam uma produção dos anos 60, o anúncio elogia a capacidade de rifles e metralhadoras de plástico de imitar o som dos disparos de armas de verdade. Dois garotos de 7 ou 8 anos brincam com as falsas armas, quando são abordados por policiais. Para deleite dos garotos, os policiais asseguram que confundiram o ruído dos brinquedos com tiros de verdade. Imagino que muitos de nós, principalmente os homens, já se viram cobiçando um brinquedo desse tipo quando garotos. A partir dessa sensação, as cenas de Tiros de Columbine passam a incomodar também a nós, colonizados do lado sul do império.
Programas policiais de lá e de cá span>
É o que ocorre, por exemplo, quando a TV torna-se alvo do raciocínio simples e exato do diretor. Num cruzamento de trânsito em Las Vegas, Moore encontra profissionais da TV alertados por um falso alarme sobre tiros no local. O cineasta pergunta ao colega jornalista o que ele escolheria entre notícias sobre um tiro ou uma ocorrência sem violência. O jornalista dá uma resposta franca e clara: “Vá sempre atrás do tiro”. Logo em seguida mostra cenas do programa jornalístico chamado Cops (tiras, em inglês), que já não é mais apresentado. A especialidade da atração era mostrar perseguições e prisões de suspeitos. Invariavelmente, negros e sempre pobres. Moore pergunta ao diretor do programa porque não fazer o mesmo quando criminosos colarinho-branco são detidos. O entrevistado alega que esse tipo de ocorrência não dá bom material televisivo. São raras e, quando acontecem, os suspeitos são detidos com o acompanhamento de advogados bem pagos. Não há cenas de tensão, como acontece em detenções de pessoas sem posses. De novo, o incômodo bate à nossa porta. Não há como não lembrar de programas como Cidade Alerta, Repórter Cidadão, Brasil Urgente e outros do mesmo gênero. Verdadeiros desfiles de barbaridades que colocam a culpa da violência em suas vítimas (nos pobres) e escondem a responsabilidade dos donos do poder.
A terra do blues e do jazz não pode produzir apenas imbecis
Dois problemas poderiam ser apontados no filme. O primeiro é o fato de que Moore parece não chegar a uma conclusão sobre o problema que se propôs a investigar. Mas talvez essa não seja o papel da produção. Já basta ter retratado de maneira tão crua a cultura dominante nos Estados Unidos. Além disso, a entrevista final com Heston dá alguma pista de que os tiros disparados na escola de Columbine podem ter tudo a ver com a mentalidade extremamente conservadora da elite branca do país.
O outro problema seria o de que a sucessão de imagens sobre a imbecilidade da América branca dá a impressão de que não há vida inteligente entre os norte-americanos. Mas a própria existência de Tiros em Columbine e a premiação de Moore com um Oscar são a negação disso. Claro que alguém poderia apontar a premiação pela academia de Hollywood como um sinal de que mesmo a dura crítica de Moore pode ser absorvida e neutralizada pelo sistema. O maior erro dessa idéia é atribuir ao esquema de poder norte-americano uma capacidade infinita de superar as contradições que cria. Tal capacidade é realmente grande, mas nunca seria inesgotável. Dizer isso é negar a história. E também ficar cego às possibilidades de criação de um povo que deu à humanidade patrimônios como o blues e o jazz.
O surgimento de um produtor cultural como Michael Moore somente é possível porque há senso crítico em ebulição na sede do império. E é dele que esperamos ver surgir mais denúncias contra a imbecilidade que colocou George W. Bush no poder.