A trajetória de uma das mais ricas personalidades da vida social e política do país, percorrendo episódios históricos – como a Insurreição de 1935, a luta pela anistia e a fundação do Partido dos Trabalhadores, além da Guerra Civil espanhola e a Resistência francesa contra a ocupação alemã durante a Segunda Guerra Mundial – e revelando motivações pessoais e dramas familiares. Assim é o longa-metragem “Vale A Pena Sonhar”, dirigido por Stella Grisotti e Rudi Böhm e produzido pela Superfilmes, que aborda a vida de Apolônio de Carvalho.

Voluntário das Brigadas Internacionais da Guerra Civil Espanhola e coronel da Resistência contra o nazismo alemão na França, Apolônio de Carvalho foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores no início da década de 1980.

As lutas trouxeram reconhecimento  a Apolônio. Por ter sido voluntário nas Brigadas Internacionais da Guerra Civil Espanhola, nas quais combateu de 1937 a 1939, ganhou a cidadania espanhola, em 1996, e participou, como convidado, das homenagens que o governo daquele país prestou aos brigadistas, na passagem dos 60 anos da guerra. Na França, foi coronel da Resistência na luta contra o nazismo (comandou ações em Marselha, Lyon, Nîmes e Toulouse) na 2ª Guerra Mundial, recebeu a Cruz de Guerra e o grau de Cavaleiro da Legião de Honra. Na Resistência, conheceu a militante comunista Renée, com quem se casou e teve dois filhos, René-Louis e Raul.

Entre os principais depoimentos colhidos para “Vale a Pena sonhar”, destaca-se o de Renée de Carvalho, esposa de Apolônio. Filha de comunistas franceses, Renée participou da Resistência contra a ocupação nazista trabalhando como agente de ligação. Sua irmã e tia foram deportadas para campos de concentração na Alemanha.

René-Louis e Raul de Carvalho, ambos filhos de Apolônio, também estão presentes no documentário. Nascido na França durante a Segunda Guerra Mundial, Rene-Louis em 1968 se engajou na luta armada contra a ditadura militar. Foi preso e exilado no Chile, onde ficou detido no Estádio Nacional, e, posteriormente, na França. Raul, junto com o pai e o irmão, também fez parte da resistência armada em 1968. Ficou preso três anos no presídio de Ilha Grande.

Outros personagens de “Vale a Pena Sonhar” são Delcy Silveira (integrante das  Brigadas Internacionais que lutaram contra o fascismo na Guerra Civil Espanhola), Gervasio Puerta (espanhol combatente na Guerra Civil Espanhola e na Resistência Francesa), Serge Ravanel (chefe nacional do “Groupe-Franc”, chefe regional das FFI – Forças Francesas do Interior  e Comandante da Libertação), Lucie Aubrac (militante da Resistência Francesa, articulou um plano ousado que livrou o marido Raymond Aubrac, um dos principais líderes do movimento, das garras dos alemães, tendo prestado depoimento no inquérito que condenou Klaus Barbie por crimes de guerra),  Jaques Breyton (militante da Resistência Francesa, foi preso pela Gestapo em Lyon, é empresário e vive há mais de 30 anos no Brasil; no final dos anos 1960 foi preso por apoiar a luta armada contra a ditadura militar).

Stella Grisotti e Rudi Böhm acabam de retornar de uma viagem à França e à Espanha. Durante três semanas, os diretores percorreram os  locais onde aconteceram as principais batalhas da Guerra Civil Espanhola e  Resistência Francesa, realizando pesquisa de imagens, entrevistas e locações. Entre os materiais localizados na Espanha estão imagens da formação do exército republicano e das Brigadas Internacionais; o bombardeio das cidades de Madrid, Barcelona e Guernica; a batalha do Ebro, a mais sangrenta  luta da guerra civil espanhola; a população fugindo dos bombardeios e construindo barricadas; a participação das mulheres na guerra; e a fuga dos espanhóis no final da guerra rumo aos Pirineus.

Em arquivos franceses foram localizadas imagens dos campos de refugiados de Argelés-Sur-Mer e Gurs, onde o Apolonio ficou preso junto com os espanhóis que lutaram contra o fascismo; Ocupação dos soldados nazistas em Paris; sabotagens nas linhas de trem e atentados contra linhas de transmissão; os combates da resistência Libertação de Paris, Toulousse, Lyon; afundamento de navios em Toulon; campos de concentração na Alemanha; e volta dos deportados no final da guerra.

Segundo a diretora Stela Grisotti, o mais intessante nos depoimento do filme “não são exatamente fatos novos ou reveladores da história brasileira, mas as histórias de vida de uma famíla obrigada a conviver com rígidas normas de segurança. Aí temos casos dos filhos que precisam mudar de casa, cidade e nome constantemente, convivendo apenas com as famílias de militantes sem muito contato com a realidade.”

Como relata Rene-Louis de Carvalho, “o mais complicado para a gente foi entender o que era o mundo real. Eu acho que foi mais difícil que a própria clandestinidade”. Ou o depoimento da Renée, esposa de Apolônio, explicando as dificuldades do Brasil no pós-guerra quando eles retornam ao país: “A vida aqui foi muito difícil porque eu me encontrei sozinha, sem falar a língua. Havia dificuldade no pós-guerra, havia falta de leite, faltava carne, faltava muita coisa aqui. Eu me encontrava depois de uma militância muito ativa, muito perigosa, carregando armas, carregando munições, carregando material subversivo, eu me encontrava feito uma dona-de-casa com uma criança de colo e outra a caminho. O Apolônio ausente de casa, sem horário para nada”.

Veja no final texto sobre Apolônio de Carvalho.

Sobre os diretores

Nascido na Áustria e formado em indústria gráfica, em 1973 Rudi Böhm foi convidado por Hans Donner para criar vinhetas e aberturas de novelas e programas da TV Globo. A partir de 1974, já estabelecido no Brasil, fez imagens óticas, animação e programação visual de longas metragens e criação e produção de comerciais. Em 1981 fundou sua própria empresa, a Ilimitada Ltda, a primeira casa de finalização para cinema e televisão

do país, especializada em efeitos especiais. Dirigiu, montou e finalizou com efeitos especiais o media-metragem “Motorista de Caçamba”, um documentário sobre os garimpeiros de Serra Pelada, onde a trucagem é parte da linguagem cinematográfica. Atualmente dirige o Núcleo de Artes e Cenografia da TV Cultura.

Stela Grisotti há dez anos trabalha como pesquisadora de documentários para televisão e cinema. Entre outros, participou da pesquisa para “Urbania (longa-metragem dirigido por Flavio Frederico), “O Povo Brasileiro” (série televisiva dirigida por Isa Ferraz), “3 X Leila” (série dirigida por Denise Saraceni), “Gente Que Faz” (série produzida pela TV 1, com episódios dirigidos por Roberto Gervitz, André Klotzel, Eduardo Escorel e Ricardio Dias, entre outros) e “Genoma ao Vivo” (série de vídeos dirigidos por Daniela Thomas para a exposição de mesmo nome, promovida pela Fundação Brasil 500 e FAPESP). atuou também como coordenadora de pauta dos programas “De Frente Prá Vida” e “Inovar para Crescer” (exibidos na TV Futura), foi coordenadora de produção da Ilimitada Produções Cinematográficas e diretora e roteirista do documentário “Pedra Podre”, um vídeo de 25 minutos que mostra as falhas na construção das usinas nucleares de Angra dos Reis, os perigos do lixo nuclear e a falta da segurança da população que vive ao redor das usinas.

Sobre a produtora

A Cinematográfica Superfilmes foi fundada em 1983 e é dirigida por Zita Carvalhosa. Viabilizando projetos próprios e de realizadores independentes, a Superfilmes estruturou-se para atuar nas diferentes áreas da produção audiovisual, tornando-se uma das principais produtoras do cinema independente paulista da atualidade.

Entre as produções de filmes e programas documentários da Superfilmes, destacam-se os longas-metragens “Memórias Póstumas” (André Klotzel), “Urbania” (de Flavio Frederico) “No Rio das Amazonas” e “Fé” (ambos de Ricardo Dias), “Carrego Comigo” (Chico Teixeira), “O Cineasta da Selva” (Aurélio Michiles), “Felicidade É…” (episódio “O Bolo”, de José Roberto Torero), “Anjos da Noite” (Wilson Barros) e “Tônica Dominante” (Lina Chamie).

A Superfilmes é também co-produtora de “Central do Brasil” (de Walter Salles) e produtora dos programas televisivos “O Povo Brasileiro” (inspirado na obra de Darcy Ribeiro), “Frutas do Brasil” (dirigido por Helena Tassara) e “Crônicas Amazônicas – La Terre et La Peine” (co-produção com Les Films D’ICI para TV francesa La Sept/Arte).

Entre os diversos curtas-metragens produzidos pela Superfilmes incluem-se “O Que Move?” (Nilson Villas Boas), “A Rifa” (Simone Raskin), “Karai, O Dono Das Chamas” (Ines Ladeira & Tião Maria), “Ondas” (Ninho Moraes), “Marias Da Castanha” (Simone Raskin & Edna Castro), “Pedeguerra” (Rubens Xavier), “Branco E Preto (Norte & Sul)” (Ninho Moraes ), “A Garota Das Telas” (Cao Hamburger), “A Mulher do Atirador de Facas” (Nilson Villas Boas), “Os Calangos do Boiaçu” (Ricardo Dias), “Amor!” (José Roberto Torero), “Dente por Dente” (Alice Andrade), “Criaturas Que Nasciam em Segredo” (Chico Teixeira), “Onde São Paulo Acaba” (Andréa Seligmann), “Caligrama” (Eliane Caffé), “Ao Vivo e a Cores, Sexo e Sangue na TV” (Tadeu Knudsen), “A Alma do Negócio” (José Roberto Torero), “Todo Dia Todo” (Flavio Frederico), “Postal Branco” (Philippe Barcinski) e “Distraida Para a Morte (Jeferson De). 
 
Sobre Apolônio de Carvalho

Apolônio de Carvalho nasceu em Corumbá, em 1912. Neto de camponeses, filho de operário que conseguiu romper a barreira de classe ao seguir a carreira militar, teve na própria família a iniciação para a vida solidária. Segundo Apolônio, o pai, Cândido Pinto de Carvalho Júnior, republicano de militância ativa, contava com orgulho ter sido autor de um manifesto de repúdio à ameaça de bombardeio por parte da Inglaterra, a potência colonialista da época, contra Valparaíso e Valdívia, cidades portuárias do Chile. No documento, ele e um grupo de cadetes ofereciam-se para combater ao lado de seus colegas da Escola Militar de Santiago, em defesa da independência e da soberania do país latino-americano ameaçado.

Outro exemplo veio do irmão mais velho, Deusdédit, que fugiu de casa, em 1914, com um grupo de colegas do ginásio, rumo a Paris, onde pretendia engajar-se na resistência à invasão da França pelas tropas alemãs, no início da Primeira Guerra Mundial. Acabou detido pela família, com auxílio do Itamarati, ainda no Uruguai. Mas seguiu como personagem principal da adolescência de Apolônio, ao engajar-se no Movimento Tenentista e participar ativamente das revoltas sociais que marcaram os anos 1920.

Caminho que, na década seguinte, começaria a ser trilhado pelo próprio Apolônio, já então oficial do Exército brasileiro. O convívio na caserna com a esquerda militar leva-o a engajar-se na ANL – Aliança Libertadora Nacional, que combatia a ditadura Vargas. Em 1935, é preso e expulso do Exército. Na cadeia, toma contato com a teoria marxista, nos cursos ministrados pelos militantes do PCB – Partido Comunista Brasileiro.

Libertado em 1937, entra para o partido. E tem a oportunidade de dar curso à sina solidária de sua família: parte para a Espanha, engaja-se nas Brigadas Internacionais que combatem ao lado das forças republicanas contra os fascistas, numa das mais cruentas guerras civis da História. Tenente da artilharia, vive a fraternidade do front, aquela que, segundo Hannah Arendt, “tem seu lugar natural entre os reprimidos e perseguidos, os explorados e humilhados, que o século XVIII chamava de infelizes, les malheureux, e o século XIX de miseráveis, les misérables”.

Ao lado de operários e camponeses espanhóis, militantes socialistas, anarquistas e comunistas vindos de todos os cantos do mundo, Apolônio apreende o significado de um internacionalismo focado na solidariedade e no compromisso c

om o ser humano, lição preciosa para nós, que vivemos hoje sob o signo da globalização excludente movida pelo Capital. Participa de dezenas de batalhas, testemunha o heroísmo e a energia criativa com que os trabalhadores espanhóis sustentam um combate desigual contra as forças fascistas, apoiadas militarmente pela Alemanha e pela Itália, diante do olhar passivo das potências democráticas européias.

Vê, impotente, a frente republicana romper-se, dilacerada pelo sectarismo de suas lideranças políticas, sob a influência da União Soviética e do stalinismo. E experimenta a derrota, a retirada apressada em direção à fronteira, a rendição humilhante, o internamento num campo de concentração francês. É de lá que vê o início da Segunda Guerra, percebendo-o como um prolongamento lógico da batalha perdida na Espanha. Foge para Marselha e engaja-se na Resistência Francesa.

Conhece Renée, filha de militantes operários. Ganha uma companheira para a luta e para a vida. Logo nasce René-Louis, o primeiro filho. Formam uma família, que roda o país na mais dura clandestinidade. Junto com os partisans, combatem as tropas nazistas de ocupação e seus aliados do governo de Vichy com todos os meios de que são capazes de mobilizar, corpo a corpo, olho no olho. Ao final da guerra, exibem com orgulho as patentes de oficiais das Forças Francesas do Interior.

Sobre essa experiência vivida por Apolônio e Renée, diz o historiador Eric Hobsbawn, no livro “O Novo Século – Entrevista a Antônio Polito”: “Se examinarmos as grandes causas nas quais as pessoas de minha geração se empenharam, como a guerra contra o nazismo, é impossível dizer que o preço pago foi maior do que os resultados obtidos. Será que o mundo seria melhor se não tivéssemos resistido? Não creio que hoje exista uma única pessoa que tenha participado dessa luta e esteja disposta a dizer que não valeu a pena.”

Ainda na França, retoma o contato com o PCB, através do artista plástico Cândido Portinari. É chamado de volta ao Brasil. Embarca em 47, junto com René-Louis e Renée, grávida do segundo filho, Raul. Torna-se dirigente da União da Juventude Comunista. Vive, ao lado de Renée e os dois filhos, um breve período de militância em liberdade. Meses depois da chegada, o governo Dutra consegue arrancar da Justiça a decretação da ilegalidade do partido. É a volta à rotina de perseguições e clandestinidade. Sobre a vida nesse período, conta Apolônio:

“Mudávamos de bairro ou cidade de seis em seis meses; reduzíamos, tanto quanto possível, o contato com a vizinhança. As crianças, acompanhando esses deslocamentos contínuos, eram obrigadas a trocas sucessivas de nomes e escolas. Evitávamos qualquer relação com militantes que não os estritamente ligados ao trabalho de direção. Em sete anos, nossa vida cultural reduziu-se a duas idas sorrateiras ao cinema. A consciência culpada tornaria indelével a lembrança de “O Idiota”, de George Lampin, e “Le Diable au corps”, de Claude Autant Lara. As relações de família são rompidas. Recém-afastada da terra natal, Renée é particularmente atingida. A correspondência, que aliás chega aberta às nossas mãos, acaba ficando rarefeita e estanca.”

Privado da ação política e do contato com as pessoas, que davam sentido à sua vida e à de Renée, Apolônio sente abalar-se a confiança no PCB como instrumento de realização dos ideais revolucionários.

“Até então, eu conhecera apenas a imagem envolvente do partido. Na ‘Ilíada dos que éramos jovens nos anos 30’, como diria Eric Hobsbawn, e frente a um sistema capitalista tumultuado pela crise de 29 e por guerras mundiais sucessivas, o socialismo em ascenso na URSS caracterizava-se a meus olhos sobretudo pela generosidade: a defesa ao direito de autodeterminação dos povos e o combate ao colonialismo; o mais amplo humanismo, sob signo próprio – ‘o capital mais precioso é o homem’; o princípio de justiça e solidariedade sobrepondo-se às fronteiras.

“(…) Agora, sob o profundo isolamento da clandestinidade, ainda agravado por uma orientação política equivocada e distante da realidade, vou conhecer de perto uma de suas faces mais chocantes: a profunda desigualdade existente entre os militantes e seus quadros dirigentes. A relação entre direção e bases se constrói sob o modelo do partido comunista da União Soviética. Seus dirigentes, aureolados pelo prestígio da vitória da revolução, detêm o monopólio do saber e da verdade. Não precisam justificar ou prestar contas de suas decisões. Sob esse escudo, impõem-se o elitismo e o autoritarismo – consideravelmente agravados durante o domínio do stalinismo – que acabarão se tornando marcas registradas dos PCs. Elas também estarão presentes em relação às vocações, desejos e necessidades dos militantes.”

Alguns episódios aguçam a reflexão crítica que levaria Apolônio, anos mais tarde, a romper com o PCB. Em 54, o suicídio de Vargas expõe o que ele chamou de “completo divórcio entre a orientação política seguida pelo PC e a população (…); enquanto esta protestava maciçamente nas ruas, documentos ainda quentes dos comunistas chamavam à derrubada do governo Vargas pelas armas”.

Dois anos depois, ele e Renée participavam de um curso de formação política em Moscou, na mesma época em que militantes e dirigentes do PC soviético se lançavam à preparação do XX Congresso do partido, em que foram reconhecidos, oficialmente, os crimes e atrocidades cometidos sob a direção de Stálin.

“Por coincidência – conta Apolônio – estávamos também os dois iniciando nossa quebra particular do culto à personalidade. O que era relativamente fácil para Renée e seu espírito aberto, de agudo senso crítico e, não raro, cáustico. (…) Renée me ajudaria, em meu lento retorno ao papel de militante consciente, a ver os ostensivos problemas de uma sociedade que, quarenta anos atrás, se libertara dos grilhões do capitalismo: marcas de atraso; largos desníveis sociais; as duras condições de vida dos trabalhadores, no campo e na cidade; os privilégios dos altos e médios escalões partidá

rios; o monopartidarismo; a diluição do papel dos soviets, ou conselhos populares, sob o peso da fusão do Partido-Estado.”

No início dos anos sessenta, ainda no PCB, o crescimento dos movimentos populares no Brasil permite a Apolônio se reaproximar de sua fonte vital de energia: o contato direto com trabalhadores e estudantes. Ele, Renée e alguns companheiros de partido, como Mário Alves e Jacob Gorender, lançam-se a um intenso trabalho de educação política no Rio de Janeiro, que se espalha por bairros populares, sindicatos e universidades.

“Gosto muito do que faço. Empolgo-me com as perspectivas novas que a militância volta a me oferecer. Pouco a pouco, vou voltando a ser o militante de antigamente, até que o golpe militar de 64 vem romper esse empenho.”

O golpe de 64. A derrota sem luta. Na manhã de 1.o de abril, quando o levante militar já era uma realidade, Apolônio participa de uma reunião do comitê central do PCB. Um chamado à greve geral articulada pela CGT e a confiança no esquema militar de Jango são as únicas respostas oferecidas pelo partido. Apolônio volta para casa na hora do almoço. Comunica à família a decisão partidária de “esperar”. E espanta-se com a reação dos dois filhos, então estudantes universitários.

– Você vai esperar. Nós não. Amanhã, ao meio-dia, os estudantes se encontrarão na Cinelândia. Tudo está planejado.

Os filhos contam que terão armas e apoio dos fuzileiros navais comandados pelo almirante Aragão. Sairão da Cinelândia para atacar o Palácio Guanabara, sede do governo do Rio de Janeiro. Apolônio e Renée reagem como pais. Certamente, pais nada rotineiros, previsíveis. Mas o impulso é o de defender a cria.

“Renée e eu nos indagamos, olhos nos olhos: que fazer? Antes de tudo, concluímos, é preciso tentar proteger os jovens frente a uma repressão que nos parece inevitável. (…) Busco advertir a direção do partido. Sei onde está um de seus membros. Ligo para ele. Ouve-me incrédulo. Insisto que devemos agir rápido. Não podemos nos omitir, a situação é grave. O interlocutor parece sorrir, fraternalmente, ao telefone:

– Acalme-se. Não está ouvindo os comunicados oficiais? Vocês estão vendo fantasmas.” No dia seguinte, a manifestação dos estudantes é reprimida a bala. Nem armas, nem fuzileiros navais. Para defendê-la e garantir a dispersão em segurança, lá estavam apenas Apolônio e alguns antigos colegas de farda por ele arregimentados, com suas próprias armas. Retirado de lá por um dirigente partidário, ele, Renée e os filhos iniciam um novo mergulho na clandestinidade.

A incapacidade demonstrada pelo PCB de articular a resistência ao golpe militar precipita, nos anos seguintes, a ruptura em massa com o partido. Apolônio lidera a criação de uma nova organização política, o PCBR – Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. E a exemplo de milhares de militantes, embarca na trágica aventura militarista do final dos anos sessenta.

As teses que fundamentavam o enfrentamento armado da ditadura militar, a partir de pequenos núcleos guerrilheiros que, a exemplo da revolução cubana, conquistariam a adesão popular e marchariam irresistivelmente rumo à vitória, tinham fortes razões para propagarem-se como rastilho de pólvora junto aos militantes brasileiros, segundo Apolônio: “a frustração pela derrota de 1964, sobretudo por seu caráter humilhante, sem luta; o niilismo político, dadas as diversas orientações terem levado a sucessivas derrotas; o romantismo revolucionário; afora as dificuldades da ação política na clandestinidade, com os movimentos sociais de todo paralisados”.

No dia 13 de janeiro de 1970, o caminho da luta armada chega ao fim para Apolônio. Violando os princípios básicos de segurança que aprendera ao longo de duas guerras e algumas décadas de militância clandestina, ele vai até a casa de um companheiro que deixara de comparecer a sucessivos pontos de encontro. É capturado por agentes da repressão política que lá o aguardavam e levado ao quartel da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro.

“Lembro em particular exemplos de companheiros presos no tempo da Resistência Francesa. E o lema que nos guiava: ‘se tiver de morrer, levo alguns inimigos comigo’. Estou sentado atrás do motorista e uma idéia me acode: talvez agarrando-o pelas costas e desgovernando o carro, possa fazê-lo arrebentar-se num paredão. (…) Quando o momento me parece favorável, atiro-me sobre ele; e torço com todas as forças a direção do veículo, que se choca com o paredão ao lado. O impacto, no entanto, não é tão violento quanto esperava. Pouco a pouco, volto a mim mesmo. Estava desmaiado pelas coronhadas.

“(…) Logo começa o interrogatório. Respondo com calma e firmeza. Quando aludo à justeza de nosso protesto armado contra a ditadura, um dos oficiais dá-me uma bofetada por sobre o capuz. Além de insulto, trata-se de extrema covardia. Desvencilho-me do capuz e jogo-me contra eles. Por pouco tempo. Segundos depois, já por terra, volto pouco a pouco a mim. Agora estou algemado nos pulsos e tornozelos. Na verdade, tento apenas portar-me como aprendi na militância. Como não tenho armas, reajo com punhos aos insultos. “Não sei quantos dias passei sob tortura. Sei que foi implacável, feita de ódio e sadismo. Só deixei de ser torturado quando o coração ficou por um fio, e eu literalmente apaguei.”

Meses depois, localizado por Renée no quartel da PE, recebe a notícia de que não ficaria preso por muito tempo. No dia 17 de junho, parte para a Argélia, junto com outros 39 companheiros, trocados pelo embaixador da Alemanha, sequestrado por um comando guerrilheiro. Renée junta-se a ele tempos depois, quando o filho Raul e sua mulher Isabel deixam a prisão no Brasil. Seguem para a França. Apolônio ainda faz
planos de voltar clandestinamente, para se reintegrar à luta. É dissuadido por Renée. O golpe militar no Chile, em 73, inviabiliza definitivamente o projeto. Apolônio acompanha de longe a eliminação brutal dos últimos focos de resistência armada aos militares brasileiros.

“Condenados à morte como ‘irrecuperáveis’ pela ditadura militar, banidos no interior mesmo de seu próprio país, isolados da população a que dedicaram anonimamente seus sacrifícios e suas vidas, eram os sobreviventes da VAR, da ALN, da VPR, do PCBR e de outros grupos e organizações. Eram os momentos finais, com equívocos e a coragem da desesperança, de uma luta generosa, toda voltada para nosso povo. Mas, e nisto reside a angústia maior de seu sacrifício, ignorada pelo próprio povo.

“(…) Uma derrota que me fez lembrar várias outras, distantes ou recentes. Como as de novembro de 1935, maio de 1947, agosto de 1954 e, bem mais perto, a de abril de 1964. Em todas elas, encontramos os mesmos anseios de justiça e liberdade. A mesma sede de igualdade. A mesma recusa aos contrastes, injustiças sociais e aos regimes de arbítrio, que insistem em se repetir. E a mesma autodoação, generosa e exemplar.”

No fim dos anos 1970, com a retomada das lutas sociais e a conquista da anistia, Apolônio e Renée voltam ao Brasil. Direto para as trincheiras. Participam da criação do Partido dos Trabalhadores, do qual Apolônio foi dirigente até 1987, quando sentiu faltar a energia necessária para enfrentar a dura rotina da militância.

Permanece em contato com os dirigentes do PT, mas já à margem da agitação cotidiana da vida partidária. É assim que recebe o impacto do desmoronamento do império soviético.

“Claro que a pior das derrotas, a que mais doeu, foi o desmoronamento do mundo socialista. Mas já percebia a falência do regime e dissociava o socialismo que sonhava construir, da experiência soviética e chinesa. Depositei, sim, esperanças em Gorbachev. Acreditei, com muita força, que ele conseguiria reverter a situação, apoiados nos aspectos positivos do regime, que não podem ser negados. Não tinha noção, no entanto, do grau de descalabro da economia soviética e do abismo de descrédito a que os comunistas haviam chegado. Por mais sensatos que fossem, os “passos de tartaruga” de Gorbachev já não adiantariam. Fiquei chocado pelo caráter fulminante dessa implosão. Reforçou-se a minha consciência de que o socialismo deve ser construído não apenas para o povo a que se destina, mas com ele. Só pode existir se for uma obra coletiva, indissociavelmente ligado à democracia.”

Em novembro de 1996, Apolônio e Renée são convidados a visitar a Espanha democrática, sessenta anos depois do início da Guerra Civil entre republicanos e fascistas. Por iniciativa dos partidos de esquerda, o parlamento resolvera conceder cidadania espanhola aos 374 remanescentes das Brigadas Internacionais. Era a realização da promessa de Dolores Ibarruri, La Pasionaria, por ocasião da retirada dos voluntários das frentes de batalha: “Não os esqueceremos. E quando a oliveira da paz florescer, voltem. A Espanha será sempre a sua pátria.”

Nas últimas páginas de sua autobiografia, o cidadão do mundo Apolônio de Carvalho faz um balanço do tempo em que transcorre sua vida: “Nele assistimos a duas guerras de âmbito mundial que ceifaram dezenas de milhões de vidas com os meios tradicionais cada vez mais poderosos mas, sobretudo no caso da segunda, de forma organizada e racionalizada, capaz de eliminar parte de todo um povo pelo trabalho forçado até a exaustão e as câmaras de gás. Vimos centenas de milhares de seres humanos desaparecerem em cinzas, nas frações de segundo de um bombardeio atômico. Milhões de homens – o mais precioso dos capitais – apodrecerem em prisões e campos de trabalho.

“(…) Nesses combates, vencemos às vezes – o mais das vezes fomos derrotados. Mas todos os avanços civilizatórios arrancados ao capitalismo nesse século, no terreno das liberdades democráticas e no campo das condições de vida da população, foram resultados das lutas do movimento social, com a presença ou sob a direção dos que lutavam pelo socialismo.”

Nas últimas linhas, Apolônio permite-se um tom mais pessoal: “Com Renée, o amor profundo e privilegiado de toda uma vida. E uma floração de amizades sinceras, sem as quais viver não tem sentido. E uma constante e saborosa vontade de viver. Alimentada naturalmente e sem artifícios. Pois, felizmente, de viver a vida não me fartou.”

Sugestões para entrevistas:
Stela Grisotti – tels (11) 4144.1862 e (11) 9382.6337 ou amarcord@uol.com.br
Rudi Böhm – tels (11) 4144.1871 e (11) 9115.7934 ou rudibohm@uol.com.br

Atendimento à Imprensa:
Francisco Cesar Filho – tels (11) 3032.3057 e 9157.7433 ou xikino2@uol.com.br