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Na abertura do 22º Curso do NPC, Frei Betto, Beto Almeida e Flávia Braga Vieira debateram o que ocorre ao sul da fronteira em tempos de fim de ciclo dos governos populares e de mudança de época

Por Najla Passos/ para o NPC

O fim do ciclo dos governos populares na América Latina está inserido no atual contexto de mudança de época, em que o mundo experimenta transformações só vivenciadas há 500 anos, com a passagem da Idade Média para a Moderna? E qual o papel da comunicação de esquerda na disputa de hegemonia nesta conjuntura histórica? Essas foram algumas questões levantadas durante a mesa de abertura do 22º Curso Anual do NPC, intitulada “O que se passa ao sul da fronteira”, que reuniu o diretor da TeleSur no Brasil e jornalista do Brasil Popular e da TV Senado, Beto Almeida; o militante e escritor premiado Frei Betto; e a professora da Universidade Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Flávia Braga Vieira.

Beto Almeida abriu o debate defendendo a centralidade da comunicação em todo processo revolucionário, em todas as lutas anti-imperialistas. “Durante toda a longa marcha da revolução chinesa, a impressora foi levada no lobo de burro para comunicar às populações a razão daquele movimento. Aquela não era só uma marcha militar, mas uma verdadeira revolução cultural, porque sempre se entendeu que era preciso a comunicação para fazer a formação revolucionária”, explicou.

Segundo Almeida, a longa marcha percorreu 10 mil quilômetros e o jornal saiu todos os dias, mesmo debaixo de bala. Ele lembrou também que, durante a Revolução Cubana, os rebeldes, mesmo nas condições precárias em que viveram na Sierra Maestra,  mantiveram programação diária na Rádio Rebelde e editaram o Jornal Cuba Livre.

O jornalista apontou ainda exemplos da história recente do sul do Equador. De acordo com ele, os governos de esquerda da América Latina que investiram em uma imprensa da classe conseguiram maior apoio popular – e consequentemente uma maior sobrevida – do que aqueles que desdenharam o papel da atividade na disputa de hegemonia.

“Experiências revolucionárias com grande apoio popular, como a venezuelana, a boliviana, sempre são precedidas da implementação de uma imprensa forte dos trabalhadores, capaz de disputar a hegemonia com a imprensa comercial”, destacou.

Segundo ele, a Venezuela enfrenta uma grave crise de desabastecimento fabricada de fora, mas mesmo assim conseguiu combater o analfabetismo, reduzir a mortalidade infantil, dentre outras conquistas sociais importantes. E, apesar de todas as mentiras veiculadas pela imprensa comercial internacional, mantém grande apoio popular.  Para Almeida, isso ocorre porque Chaves fez investimentos reais na implementação de uma imprensa de esquerda. Como exemplo, citou o programa Alô Presidente, que o próprio mandatário apresentava na televisão aberta.

Na Bolívia, ainda segundo ele, a situação é parecida. “Cansado de ser chamado pela imprensa comercial de “narcopresidente”, Evo Morales decidiu lançar uma jornal comprometido com seu governo revolucionário. Em 5 anos, O Câmbio já alcançava a mesma tiragem do que o principal jornal burguês do país, com 75 anos de história”, informa.

Em contraposição, Beto Almeida apontou a experiência dos governos populares brasileiros que, segundo ele, mesmo registrando avanços extraordinários, não conseguiram se manter no poder, justamente porque não investiram em comunicação. “Os processos transformadores que não se sustentam em uma comunicação verdadeiramente transformadora, eles padecem”, concluiu.

 

A historicidade faz o revolucionário

Em uma leitura mais geral, Frei Betto defendeu que o entendimento do atual momento exige duas chaves de leitura. A primeira, segundo ele, é a percepção de que o processo que o mundo vive hoje só encontra equivalência há 500 anos, quando a história passou da Idade Média para a Idade Moderna. “Nossos pais, avós e bisavós viveram épocas de mudanças, mas nos estamos vivendo uma mudança de época”, explicou.

De acordo com o escritor, o paradigma da Idade Média foi a religião, enquanto o da modernidade foi a ciência. Mas a passagem do obscurantismo à chamada época das luzes não conseguiu cumprir a tarefa que se propunha. “A modernidade trouxe avanços, mas também trouxe o capitalismo. O homem conseguiu colocar os pés na lua, mas  não conseguiu colocar nutrientes nas barrigas de milhões de crianças com fome”, protestou.

Agora, conforme ele, a pós-modernidade parece adotar o mercado como paradigma. “Eu gostaria muito que o novo paradigma fosse a globalização da solidariedade, mas o que está pintando é o mercado. E isso significa a barbárie, o fim”. Para Frei Betto, os sinais de desarrancho neste início de pós-modernidade são claros: fundamentalismo, terrorismo, xenofobia.

A segunda chave citada pelo escritor é a “amnésia global”, que ele define como a grande estratégia do imperialismo dos Estados Unidos para fazer com que todos nós percamos nossa consciência histórica e fiquemos à mercê do consumismo, do mercado. “Se o capitalismo condena a historicidade, se prega o fim da história, para que fazer planos? Nada adianta”, sintetizou.

Para Frei Betto, é a noção de historicidade que faz o revolucionário. E, por isso, é necessário recuperá-la para conter o avanço da direita e reorganizar a esperança, como fizeram antes Jesus Cristo, Karl Marx e Freud – os três grandes revolucionários que, segundo ele, cada um a seu tempo, reforçaram a importância da historicidade na cultura ocidental. Segundo o pensador, é tempo de resistência. “Só tem medo da morte quem não sabe porque e para que vive”, defendeu.

Fim de ciclo e violência crescente

Flávia Braga Vieira afirmou que o fim do ciclo dos governos populares da América Latina está diretamente relacionado ao contra-ataque da burguesia, após a região experimentar transformações nunca antes imaginadas. Segundo ela, mesmo instituições insuspeitas do mundo capitalista apontam avanços extraordinários na região nestes últimos anos. De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal),  a pobreza caiu 44% na América Latina em apenas uma década. A Unesco aponta que a escolarização inicial aumentou de 55% para 75%, de 1999 a 2013.

Para a professora, a criação de organismos multilaterais Sul-Sul, como a Alba, a Unasul e mesmo a Telesur foram feitos absolutamente inéditos, inseridos no bojo das mudanças promovidas pelos governos populares. “Esse ineditismo indicava uma mudança uma capacidade real de mudança na vida das pessoas. Por isso, foi brutalmente combatido pela burguesia”, afirmou.

De acordo com ela, o “impeachment” do presidente do Paraguai, Fernando Lugo, fabricado juridicamente como o da presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, foi o primeiro indício de como a burguesia iria atuar para conter os avanços na região. “A burguesia foi testando limites, medindo forças, até achar, em alguns lugares, como o Brasil, que já era possível tentar algo mais forte”, explicou.

A professora explicou também que o fim do atual ciclo econômico pressupõe a crise dos commodities, que vem acompanhada de uma avalanche conservadora, cujo elemento comum é o combate à corrupção – embora o combate seja sempre seletivo, direcionado a atores específicos.  “O modelo do justiceiro, ao estilo Sérgio Moro, desponta em vários países da América Latina”, observou.

Flávia alertou que o fim do ciclo tende a ser cada vez mais violento. Na América Latina os sintomas são vastos: os índices de assassinatos de lutadores sociais, que estiveram estáveis durante anos, já estão aumentando. Entretanto, observou que a possibilidade de se aprender com a história é sempre uma vantagem estratégia para os que luta na contramão do poder dominante. “Não há perspectiva de mudança de cenário nos próximos anos. Mas que bom que a historia está em aberto e que nós podemos aprender com ela e buscar alternativas”, ressaltou.

Nesta perspectiva, ela ressaltou a importância da esquerda reavaliar as lacunas deixadas pelos seus governos progressistas. Entre elas, a da dificuldade de estabelecer modelos de desenvolvimento diferenciados, como alertaram os movimentos sociais latino-americanos em lutas concretas como naquela contra à construção da Usina de Belo Monte. “Os governos de esquerda copiaram o modelo de desenvolvimento do capitalismo. Não deram conta de fazer a diferença. Agora, a esquerda precisa ouvir os movimentos sociais que estão há 15 anos dizendo que não pode ser assim”, defendeu.