( Pedro Tierra)
Há vinte anos escrevi este poema:
Sanaúd *
( notas pelo direito à indignação )
Sangram cedros calcinados
no vale do Bekaa.
Sangram cérebros triturados
sobre a poeira de Sabra e Chatila.
Sob paredes dinamitadas explode
a imprevista
cabeça dos cavalos
– olhos vazios
buscando decifrar inutilmente
a ferocidade dos homens –
e escorre o cheiro gosmento
da peste que antecede o assalto dos vermes.
O silêncio devorou os faróis do Apocalipse.
Os faróis de Sharon a iluminar os punhais de Haddad.
……………………………………………………………………………
Desatou-se do céu
sangrando
um vento cego,
um vento sem misericórdia
a sepultar sob a areia
os olhos assassinados
– estrelas de espanto –
das crianças de Sabra e Chatila.
Desatou-se do céu violeta
um vento de misericórdia
a varrer minucioso
a memória dos vivos:
os olhos que visitaram a carnificina,
oficina enlouquecida de Sabra e Chatila,
suplicam pela piedade do esquecimento
para seguir vivendo.
…………………………………………………………
O grito devorado pela boca feroz do silêncio
explodiu na ante-sala do império,
e desatou sua gangrena sobre a mesa dos povos:
impossível comer.
Impossível dormir.
Impossível olhar
a luz que amanhece no rosto dos filhos.
Impossível prosseguir
sem polir cuidadosamente a memória.
……………………………………………………………
Que os assassinos organizem
urgentemente uma comissão
para apurar os assassinatos!
E punir…
E poderemos então retornar
à paz dos escritórios e dos jardins
que nos acolhem ao fim da tarde,
ao sono interrompido dos indiferentes.
…………………………………………………………….
Quem se recusa a ver com agudos olhos de criança
as mãos de Sharon decompostas
pela surda força dos sangues?
E a maligna estrela
que explodiu-lhe nos olhos
ao gritar sinistro aos seus acusadores:
“ – onde estavam os senhores quando Tal – El – Zatar?
……………………………………………………………..
Quem não decifra
nesta manhã de mortos incontáveis
a bengala que sustenta Béguin?
Que ventre gestou
o vôo alucinado
dos bombardeiros?
As bombas de fósforo
despejadas até a instância do desespero?
Que braços acalentaram o fogo
que destruiu Beirute?
Que nome leva o metal dos obuses,
a lagarta dos tanques
que retalham a carne do Líbano?
Eu conheço a bengala de Béguin
entalhada nos ossos do massacre.
………………………………………………………
Treblinka, Auschwitiz, Dachau, Babi Yar,
cobrirão com seu manto de horrores
os horrores de Tal – El – Zatar, Sabra e Chatila?
Depois de toda a ferocidade
apenas carne
no silêncio dos matadouros.
Nos punhais de Haddad
brilha uma estrela gamada.
………………………………………………………….
Diante destes olhos,
exaustos navegantes
de outras tormentas
desbordou-se um campo
de espigas maduras.
Um impossível trigal,
filho do sal
e das pedras do deserto.
Espigas infinitamente repetidas
até o horizonte de Bekaa.
A força do deserto me traga,
me domina, me arrasta sonâmbulo
no seu torvelinho
ao impreciso território da miragem
que a fuga incessante do tempo me anuncia
e nega:
aqui vejo com os olhos dos meninos
de Sabra e Chatila
o ouro tenso das espigas palestinas.
Apalpo e não encontro
o grão que alimenta,
fermenta a massa
e nutre o sonho da geração que virá,
porque não virá nenhuma geração.
…………………………………………………….
O grão aqui não é ouro.
É estanho e chumbo refundidos
nas usinas do desespero.
É o grão que da morte se alimenta.
Com seus dentes de luz
morde a alma dos soldados
de Haddad e Sharon.
……………………………………………………….
Quando retornar o vento
e a memória retornar
da terceira margem da dor
recomporemos os corpos
e o imenso grito soterrado
nas valas comuns cobertas de cal e silêncio;
recomporemos um canto de terra, vento e fuzis
e traçaremos sobre a areia
com gesto de orvalho e estrela
a palavra sanaúd.
………………………………………………………
Sanaúd – Palavra árabe que significa voltaremos. Voltar ao topo da página
Goiânia, setembro de 1982.
Não me parece plausível que a palavra dos poetas tenha, em algum momento da história, detido a mão dos senhores da guerra. A poesia não dispõe de poder. A ela cabe registrar em outro diapasão – a princípio inaudível – a advertência dos indignados, a premonição dos aflitos, a busca dos sentidos ou da ausência de sentido da tragédia humana.
Em alguns casos – raros nos dias que correm – os poetas
dão corpo à sua palavra. Inventam gestos que quebram a moldura da consciência anterior. Como quem lança uma pedra e estilhaça o espelho em que nos miramos desde que nascemos. Então eles, os poetas, se tornam inconvenientes, subversivos. E, diante do gesto, mesmo aqueles que antes toleravam sua ousadia com as palavras; amavam seus delírios no exercício obscuro de trazer o impossível ao alcance da voz; de inventar novas possibilidades para a língua e para os sonhos humanos, são tomados de estranhamento. Falarei de um que há poucos dias lançou uma pedra no meio da tormenta.
Já não o reconhecem porque o poeta feriu um código sutil e inflexível: vazou do reino das palavras, e ao se afastar delas, conferiu à poesia uma força que não tinha, nem buscava: converteu a poesia em ação. Esse o sentido profundo do gesto de José Saramago ao visitar o líder do povo palestino Yasser Arafat, sitiado pelos canhões de Ariel Sharon, sob os escombros de Ramallah. Lançou uma pedra contra a superfície do espelho em que estamos habituados a nos mirar. E nos cega, a nós ocidentais. Ou que nos imaginamos ocidentais ainda que filhos de negros, índios, ibéricos e imigrantes pobres. Não nos permite enxergar a terrível semelhança entre o Gueto de Varsóvia e os campos de Jenin convertidos de campos de refugiados em campos de extermínio, nesta páscoa de 2002. Por isso foi acusado de “cegueira moral” e teve seus livros devolvidos por muitos.
Saramago suspendeu o véu que há meio século havia sido levantado, em outras circunstâncias, pela lucidez de uma importante intelectual do século XX, Hannah Arendt, ao refletir sobre a tragédia do seu povo: “Pois é perfeitamente concebível e mesmo dentro das possibilidades políticas práticas, que, um belo dia, uma humanidade altamente organizada e mecanizada chegue, de maneira democrática – isto é, por decisão da maioria –, à conclusão de que para a humanidade como um todo, convém liquidar certas partes de si mesma” (1). Pouco mais de meio século depois o povo de Israel elegeu Ariel Sharon, um criminoso de guerra, seu primeiro-ministro e foi conduzido por suas mãos a um novo holocausto, agora no alto da torre dos tanques.
Somos diariamente entorpecidos pela indiferença. E a indiferença, ensina Hannah Arendt, está na raiz da idéia de que existem “povos descartáveis”. O povo palestino tornou-se, aos olhos do governo de Israel e das ditaduras árabes vizinhas, um “povo descartável”, a exemplo do que foi o povo judeu na primeira metade do século XX, durante as duas Grandes Guerras, na Europa. “Os próprios nazistas começaram a sua exterminação dos judeus privando-os, primeiro, de toda condição legal (isto é, da condição de cidadãos de segunda classe) e separando-os do mundo para ajuntá-los em guetos e campos de concentração; e, antes de acionarem as câmaras de gás, haviam apalpado cuidadosamente o terreno e verificado, para sua satisfação, que nenhum país reclamava aquela gente” (2). Nem todos entenderam o gesto desesperado de Arafat, ao condenar os atentados de 11 de setembro. Ele encarnava a percepção aguda do que estava por vir: a fragilidade do povo palestino frente aos arsenais e a sede de sangue de Ariel Sharon, agora alimentado pelo estilo texano de tratar dos conflitos entre as nações.
Um genocídio não se improvisa. Há o momento de produzir em escala industrial a indiferença da opinião pública; e o de destruir com escavadeiras e tanques as casas, os edifícios, a infraestrutura, as condições materiais da vida; e afastar para além do horizonte visível a hipótese de um Estado palestino. Há o momento de aprisionar os que não foram sepultados sob os escombros e conduzi-los aos campos de refugiados. E, por fim, o momento de convertê-los em campos de extermínio. Em matadouros, como em Jenin.
Aos olhos do império, o povo palestino não é mais que um tropeço, um “povo descartável”, como amanhã o povo do Iraque, seu próximo alvo. O tempo dos sitiados na Basílica da Natividade, em Belém, não é o tempo do general Colin Powell. Para uns é o tempo de estancar o sangue dos corpos de adolescentes alvejados, para outro, o tempo de polir as palavras e as armas para as próximas campanhas. Não nos escandalizemos, pois, diante da afirmação daquela mãe que apontava seu filho de dez anos, em Shatila, há poucos dias, para dizer a um jornalista: “Olhe esse menino, hoje mesmo eu o transformaria em uma bomba”. Não é uma frase, todos sabemos. Que energia nutre o desespero que leva essa mulher a pronunciar a sentença de morte sobre a cabeça do seu próprio filho? Volto a Hannah Arendt que, em 1949, nos advertia: “O perigo é que uma civilização universalmente correlata, possa produzir bárbaros em seu próprio seio por forçar milhões de pessoas a condições que, a despeito de todas as aparências, são as condições da selvageria”.(3) Cumpre agradecer a José Saramago por ter lançado a pedra que estilhaçou a plana superfície do espelho que nos mantinha entorpecidos. Talvez ele tenha lançado, desde sua funda, a pedra de Davi.
Não creio que a poesia justifique a vida ou a morte. Mas não posso aceitar que a ação de um aristocrata do terror como Osama Bin Laden seja comparável aos passos dessa menina de 18 anos que se imolou há alguns dias em Jerusalém:
“Ayat Ajras”
Não suspeito a exata direção dos teus passos.
Há muita poeira e a fumaça das explosões
obscurece o verde dos teus olhos
por onde contemplo a paisagem devastada.
Não me escapa a luz crua que recorta
os escombros dos sonhos que habitavas:
singelos como tâmaras sobre a mesa,
o calor do pão e da palavra,
a água limpa num vaso de barro
ou um lugar de oração.
Percebo sob os panos sagrados do chador
o trêmulo silêncio dos teus seios
que se afastam da concha de minhas mãos,
com um som de alaúdes que se despedem.
Meus dedos de espanto adivinham
sobre a seda de tua pele de trigo,
atado em torno da cintura
que as luas prepararam
para as ternas mãos do prometido,
o doce metal das granadas.
E não atino com o gesto definitivo:
o clarão que te ilumina,
assombra, despedaça, semeia a morte
e sangra inútil sobre a pedra de Jerusalém.
(1) Arendt, Hannah: As Origens do Totalitarismo, Companhia das Letras 1989, S. Paulo, pág. 332.
(2) Op. Cit. pág. 329
(3) Op. Cit. pág. 336
Brasília, 12 de abril de 2002.
dão corpo à sua palavra. Inventam gestos que quebram a moldura da consciência anterior. Como quem lança uma pedra e estilhaça o espelho em que nos miramos desde que nascemos. Então eles, os poetas, se tornam inconvenientes, subversivos. E, diante do gesto, mesmo aqueles que antes toleravam sua ousadia com as palavras; amavam seus delírios no exercício obscuro de trazer o impossível ao alcance da voz; de inventar novas possibilidades para a língua e para os sonhos humanos, são tomados de estranhamento. Falarei de um que há poucos dias lançou uma pedra no meio da tormenta.
Não suspeito a exata direção dos teus passos.
Há muita poeira e a fumaça das explosões
obscurece o verde dos teus olhos
por onde contemplo a paisagem devastada.
Não me escapa a luz crua que recorta
os escombros dos sonhos que habitavas:
singelos como tâmaras sobre a mesa,
o calor do pão e da palavra,
a água limpa num vaso de barro
ou um lugar de oração.
Percebo sob os panos sagrados do chador
o trêmulo silêncio dos teus seios
que se afastam da concha de minhas mãos,
com um som de alaúdes que se despedem.
Meus dedos de espanto adivinham
sobre a seda de tua pele de trigo,
atado em torno da cintura
que as luas prepararam
para as ternas mãos do prometido,
o doce metal das granadas.
E não atino com o gesto definitivo:
o clarão que te ilumina,
assombra, despedaça, semeia a morte
e sangra inútil sobre a pedra de Jerusalém.
(1) Arendt, Hannah: As Origens do Totalitarismo, Companhia das Letras 1989, S. Paulo, pág. 332.
(2) Op. Cit. pág. 329
(3) Op. Cit. pág. 336
Brasília, 12 de abril de 2002.