Repórter da Pública percorre a história do Maracanã, patrimônio cultural destruído com autorização do Iphan e abandonado pelo poder público depois de mais de R$1,3 bilhão gasto em obras suspeitas de alimentar a corrupção.
Foto: Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro
[Por Rogério Daflon – Agência Pública – 23.03.2017] O Maracanã era a casa coletiva dos cariocas e dos brasileiros apaixonados por futebol. O mítico templo do esporte bretão nunca intimidou o torcedor; ao contrário, era ali que ele se sentia à vontade. No dia 2 de junho de 2013, porém, o estádio mais popular do planeta – já reformado para acolher a próxima Copa do Mundo – se apresentou tão metamorfoseado que chocou frequentadores. “Fiquei catatônico”, disse o historiador e antropólogo Marcos Alvito à Pública. “Eu, que me sentia tão pertencente àquele lugar, de repente tive a sensação de estar perdido, deslocado. Minha então namorada me disse que fiquei cinco minutos calado e perplexo.”
É como se parte do público indagasse naquele amistoso entre Brasil e Inglaterra: “Cadê o meu Maracanã?”.
Trazendo essa pergunta para o presente, pode-se dizer que o Maraca – como o chamam os íntimos – está envolto em conversas que nada têm a ver com o futebol, mas com propinas, superfaturamento das obras e uma patética discussão sobre quem vai cuidar dele daqui para a frente. Uma metáfora à perfeição do Rio de Janeiro diante de um governo estadual atarantado por imensas crises fiscal e de credibilidade.
Para explicar o que fizeram com o Maracanã, o único estádio brasileiro tombado pelo Iphan, é preciso retomar esse processo, iniciado nos anos 1980, e percorrer a trilha das sucessivas reformas que alteraram profundamente o seu projeto original, apesar de protegido por lei desde o ano 2000.
Em 1983, o então secretário de Cultura do Ministério da Educação e Cultura (MEC), Marcos Villaça, teve um estalo. Ao ouvir uma sonora vaia devido a um passe errado do lateral-esquerdo Júnior em uma partida entre Brasil e Argentina, ficou tão impressionado com aquele clima que solicitou ao Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) o tombamento do estádio.
Entrevistado pela Pública, Júnior disse que nunca tinha ouvido falar que ele, literalmente por linhas tortas, havia inspirado a ideia do tombamento. ‘’Pena que foi por intermédio de um passe errado’’, disse ele, sem conter o riso.
Para um dos maiores laterais do Flamengo de todos os tempos, porém, o erro maior foi a extinção em 2005 da geral, o coração do estádio, onde os torcedores ficavam em pé, bem perto dos seus ídolos. “Quando eu ia bater um escanteio, alguém sempre berrava para bater dessa ou daquela forma. Se desse certo, berrava de novo: ‘Eu falei , eu te disse’”. “A energia do Maracanã era algo inexplicável. Só quem viveu pode ter a dimensão. Hoje, com todas as reformas, está bem diferente. Mas alguma coisa ainda paira por ali’’, disse o ala da seleção brasileira da Copa do Mundo de 1982.
A geral foi extinta sob grande comoção popular quando se fechou o estádio para as obras dos Jogos Pan-Americanos de 2007. A reforma custou mais de R$ 300 milhões e o Maracanã reabriu mudado – no lugar da geral, cadeiras numeradas; o campo, rebaixado, distante do torcedor. Isso apesar de ser um patrimônio cultural tombado.
Desde 2000, o estádio está inscrito no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico do Iphan, onde há mais dois livros de tombo: o Histórico e o de Belas-Artes. A categoria em que foi incluído acabou dando margem a uma falsa polêmica com o objetivo de permitir sua descaracterização arquitetônica. “Optei pelos aspectos etnográfico e paisagístico, embora, é claro, o Maracanã também tenha valor histórico e arquitetônico. A forma de torcer, a própria formação de torcidas e sua imagem da perspectiva de uma vista área o transformaram em um verdadeiro templo”, disse a arquiteta Cláudia Girão à Pública sobre o parecer feito em 2000 para o tombamento do estádio.
Outro parecer, esse do conselheiro do Iphan Nestor Reis – professor de história de arquitetura da Universidade de São Paulo –, deixa clara a relação indissociável entre o estádio-monumento e sua etnografia. “O urbanismo e a arquitetura (sobretudo as obras de uso coletivo) têm uma dimensão simbólica que ultrapassa os limites dos aspectos utilitários. Mas poucas vezes a monumentalidade reúne qualidades simbólicas de caráter democrático. Em geral, as obras monumentais são afirmações de poder sobre o povo. Neste caso, ocorre o contrário. O Maracanã tem a monumentalidade da massa que o utiliza, à qual representa. Não deve ser descaracterizado”, escreveu o arquiteto.
Para ler mais, acesse: http://apublica.org/2017/03/anatomia-de-um-crime/