(Frei Betto)

A 11 de julho, o paulistano Sérgio Buarque de Holanda, nascido na Liberdade, faria 100 anos de idade. Acompanhei-o em seus últimos dias de vida, nos primeiros meses de 1982, na rua Buri, onde veio a falecer a 24 de abril. Consciente de que a enfermidade o levaria à morte, ele quis refletir sobre a travessia que o aguardava. A raiz do Brasil se desprendia rumo à visão do Paraíso.

Sérgio era agnóstico. Foi através de frei Benevenuto de Santa Cruz que o conheci em 1966. Fiquei amigo da família e, em especial, de sua mulher, Maria Amélia Buarque de Holanda. Em seus últimos dias, o autor de “Caminhos e Fronteiras” pediu-me para convidar à sua casa dom Paulo Evaristo Arns. Admiravam-se mutuamente. O cardeal trancou-se com ele na biblioteca da rua Buri, entulhada de livros e jornais empilhados pelo chão, e conversaram durante horas.

Pesquisador erudito e escritor de talento, o que torna agradável a leitura de seus textos, Sérgio era um homem muito bem humorado, que ria de quem se levava muito a sério. A veia musical da família, que nos daria tantas intérpretes e compositores ­ Miúcha, Chico, Ana e Christina ­ vem dele que, aos 9 anos, aluno do colégio Caetano de Campos, na praça da República, compôs a valsa “Vitória Régia”.

Na festa de comemoração de seus 76 anos, em casa de Chico, no Rio, fui presenteado com uma de suas brincadeiras favoritas: ouvi-lo cantar a sua versão latina de “Sassaricando”!

Sérgio era, intelectual e fisicamente, inquieto. Gostava de viajar; mudava de casa, cidade ou país como quem vai ali na esquina; adorava desafios. Foi diretor de jornal em Cachoeiro do Itapemirim; repórter da United Press; correspondente em Berlim dos Diários Associados; professor em Paris, Roma, Estados Unidos e Chile.

Democrata convicto, jamais teve escrúpulos de unir sua atividade acadêmica à militância política. Fundou a Esquerda Democrática, em 1945; ingressou no Partido Socialista, em 1947; requereu sua aposentadoria como catedrático da USP, em 1969, em solidariedade aos colegas afastados pelo AI-5; e tinha orgulho de ser, ao lado de Antonio Candido, membro-fundador do Partido dos Trabalhadores.

Almocei com Lula em casa dele. Presenciando o diálogo do líder sindical com um dos mais eminentes intelectuais brasileiros, convenci-me de que Sérgio transmitiu aos filhos um de seus predicados mais notórios e, no entanto, nem sempre visível em sumidades da academia: sensibilidade. O historiador ouvia o metalúrgico como um aluno atento ao professor de política.

Impossível entender bem este país sem passar pela visão do autor de “Raízes do Brasil”. Ao lado de Gilberto Freyre, cujos ensaios resgatam a formação da brasilidade, Sérgio destaca-se como um dos raros historiadores brasileiros que, ao contrário do sociólogo pernambucano, preferiu encarar a nação pela ótica da senzala, e não da casa grande.

Nesses tempos de aridez na vida intelectual brasileira, cujas produções são guardadas a sete chaves nos cofres da academia, exceto as apologias ao pensamento único neoliberal, ressaltar a obra e a militância de Sérgio Buarque de Holanda é revigorar a inteligência como virtude política. Ele não tinha pudor de ser um intelectual engajado, que achava graça em quem se vangloriava de rechear os saltos dos sapatos com títulos acadêmicos. Pai de Chico ­ como muitos o conheciam, depois que, famoso, Chico deixou de ser tratado como filho de Sérgio -, seu acervo na Unicamp engloba 8.513 livros, 227 títulos de periódicos, 600 obras raras e 74 rolos de microfilme, incluindo sua correspondência com personalidades como Mário de Andrade, Antonio Candido, Prudente de Moraes e Lasar Segall.

Entre as homenagens ao seu centenário, destacam-se a exposição do acervo na Unicamp, de móveis e objetos que lhe pertenceram; dois seminários (USP, de 26 a 30 de agosto, e Unicamp, em 9 e 10 de setembro); e o documentário “Sérgio Buarque de Holanda”, de Nelson Pereira dos Santos.

No prefácio à segunda edição de “Visão do Paraíso”, Sérgio cita Pedro de Rates Hanequim, que viveu 26 anos em Minas do século XVIII e foi condenado pela Inquisição como apóstata por afirmar, “para maior escândalo dos inquisidores, que o Dilúvio não foi universal, já que poupou o Brasil”.

A ser verdade, pena que os estragos causados por nossas elites governantes tenham apagado qualquer resquício daquele capricho divino. Manter viva a memória de Sérgio impõe-se, pois, como exigência a todos que têm deste país uma visão, não necessariamente paradisíaca, mas de que merecemos um futuro bem melhor.