José Arbex Jr.

Pentágono anuncia programa que permitirá ao governo controlar todos os dados eletronicamente registrados de 290 milhões e cidadãos estadunidenses; mas cresce a resistência a Bush.

Imagine um país cujo governo tivesse acesso a todos os dados eletronicamente registrados de sua vida privada: gastos com cartão de crédito, saques de dinheiro em caixas eletrônicos, históricos escolares, compras em supermercados, livros retirados em bibliotecas, sites visitados na Internet, números de telefone discados, registros de pedágios, fichas de vídeos alugados. Agora imagine que, por meio de supercomputadores, tal governo pudesse cruzar todos os dados e classificá-los segundo “padrões de comportamento”. E imagine que, por qualquer razão, você acabou sendo enquadrado em uma “categoria comportamental” considerada perigosa: você poderá ser detido por policiais que nem sequer terão de informar os motivos, ou poderá ser interrogado sem que se expliquem as razões, no melhor estilo de Franz Kafka.

“O Olho que tudo vê”

Não é ficção, mesmo que você tenha pensado em 1984, de George Orwell. O Departamento da Defesa dos Estados Unidos anunciou, no fim de 2002, um vasto programa estratégico, intitulado Conhecimento Total de Informações (TIA, Total Information Awareness), com o objetivo de permitir ao governo rastrear os movimentos dos 290 milhões de cidadãos estadunidenses, para “prevenir ataques terroristas”. As informações eletrônicas, fornecidas por corporações privadas, além dos registros públicos, serão armazenadas em gigantescos bancos de dados (para mais informações, consulte o site www.epic.org/privacy/profiling/tia/. Detalhe: 45 por cento dos executivos de grandes empresas admitiram já ter passado informações sobre seus clientes ao governo; 41 por cento declararam-se dispostos a fazê-lo voluntariamente, mesmo sem uma ordem judicial, segundo uma pesquisa realizada pela revista especializada em segurança e endereçada aos executivos, CSO, publicada em 18 de dezembro de 2002 (www.csoonline.com/csoresearch/report49.html). O logotipo do programa diz tudo: o “olho que tudo vê”, que aparece no Grande Selo dos Estados Unidos, joga um facho de luz sobre o globo terrestre. O lema do departamento é “Scientia est potentia” (conhecimento é poder). Big Brother chega em grande estilo.

Mas o pior vem agora: o projeto todo foi idealizado por ninguém menos que John Poindexter, assessor de segurança nacional do presidente Ronald Reagan em 1985-86, quando foi acusado de liderar a “operação Irã-Contras”. Agentes secretos estadunidenses, sob a chefia direta do braço direito de Poindexter, coronel Oliver North (espécie de “Rambo da vida real”), vendiam mísseis a Teerã, de forma clandestina e ilegal; os fundos eram destinados a financiar os “contras”, guerrilheiros de direita que lutavam para depor o governo sandinista da Nicarágua. Em 1990, Poindexter foi condenado por cinco acusações, incluindo conspiração e mentir ao Congresso, mas acabou absolvido por um tribunal de apelações, pois seus depoimentos haviam sido dados sob a garantia de imunidade. No governo Bush, Poindexter é diretor do Escritório para o Conhecimento de Informações (encarregado de implantar o TIA), que por sua vez faz parte da Agência para Pesquisa de Projetos Avançados da Defesa (Darpa, na sigla em inglês), responsável pela criação da Internet.

Tudo, menos Poindexter

Mesmo aqueles que aceitam, em tese, a idéia do programa não suportam a perspectiva de ter Poindexter na chefia. “Se temos que ter um Grande Irmão, John Poindexter é o último nome da lista que eu escolheria”, diz o senador democrata Chuck Schumer. Outros políticos disseram estar dispostos a propor medidas destinadas a garantir o direito à privacidade dos cidadãos (estadunidenses, é claro). Os mais importantes jornais do país – incluindo The New York Times e The Washington Post – criticaram a indicação de Poindexter. Pete Aldridge, subsecretário do Pentágono para pesquisas tecnológicas, tentando acalmar os ânimos, alega que Poindexter foi o idealizador do projeto, apresentado logo após o atentado de 11 de setembro de 2001, e que só permanecerá na sua chefia durante a fase de pesquisas e instalação. Que bom! Assim ficamos todos mais tranqüilos.

O anúncio do TIA não deve ser visto como uma iniciativa isolada, um “raio no céu de brigadeiro”. Ao contrário, ele é um resultado lógico de uma política de conjunto, articulada por George Bush júnior logo após a destruição das torres gêmeas e batizada como “guerra ao eixo do mal”. A expressão política institucional de tal “guerra”, o Decreto Patriótico, promulgado sob o impacto do atentado, atribuiu ao Poder Executivo poderes extraordinários de deter, seguir e grampear qualquer cidadão estadunidense, mesmo sem autorização judicial. Com o auxílio da mídia, a Casa Branca alimenta a paranóia antiterrorista, criando situações inusitadas. Recentemente, a insuspeita Academia de Ciências dos Estados Unidos queixou-se de que o governo está impossibilitando trabalhos de pesquisa, por retirar do ar sites da Internet que contêm informações científicas e estatísticas importantes. São censuradas até mesmo informações sobre relevo topográfico e meteorologia, prejudicando produtores rurais.

Império ou República

Apesar de tudo, a resistência a Bush cresce. Dezenas de grupos de defesa das liberdades civis pressionam os congressistas para impedirem que o projeto TIA continue. Gradativamente, recompõem-se as organizações cont

rárias à globalização e aos planos imperiais da Casa Branca, desarticuladas sob o impacto do atentado. Nos dias 18 e 19 de janeiro, centenas de milhares de pessoas realizaram manifestações, em San Francisco, Nova York, Washington e outras cidades, contra o cerco ao Iraque. Significativamente, as manifestações foram organizadas como forma de comemorar o aniversário do pastor negro protestante Martin Luther King, um dos maiores líderes da luta contra o racismo (15/1/1929 – 4/4/1968), fazendo assim um vínculo direto entre as lutas atuais e aquelas que acabaram impondo a derrota do império no Vietnã. No final de janeiro, quarenta personalidades estadunidenses laureadas com o Prêmio Nobel assinaram uma declaração contra uma guerra no Iraque. “As conseqüências médicas, econômicas, ambientais, espirituais, políticas e legais de um ataque preventivo dos Estados Unidos ao Iraque podem minar, e não proteger, a segurança dos americanos e a estabilidade do mundo”, afirma a declaração. Em novembro, milhares de intelectuais, artistas, professores, trabalhadores e jovens – incluindo nomes como Noam Chomsky, Oliver Stone, Jane Fonda, Susan Sarandon, David Harvey, Laurie Anderson, Gore Vidal, Danny Glover – assinaram um forte manifesto contra o ataque ao Iraque, intitulado “Não em Nosso Nome”. O ator Sean Penn fez publicar um anúncio de protesto, no Washington Post, e visitou Bagdá, no início de janeiro.

Big Brother ainda não venceu. De fato, a batalha está no começo. Como muitos já previram e disseram, a guerra, nos Estados Unidos, será travada entre o império e a república. Os destinos do mundo dependem, em grande parte, de quem vencerá.