Jô de Carvalho

Paris – Esta semana, a imprensa brasileira noticiou, embora com certa discrição, a nomeação do ministro José Maurício Bustani como embaixador brasileiro em Londres e a indicação de seu nome para o Prêmio Nobel da Paz. A notícia me encheu de satisfação.

Para quem não se lembra, José Maurício de Figueiredo Bustani foi o primeiro diretor-geral da OPAQ – Organização para a Proibição de Armas Químicas – criada em 1997 e sediada em Haia, na Holanda. Em 2000 foi reeleito por unanimidade e seu mandato deveria ir até 2005. A missão da OPAQ é por em prática a Convenção sobre Armas Químicas assinada em 1993, cujo objetivo é a destruição dessas armas até 2007.

Mas em abril do ano passado, Bustani “ousou” ferir os interesses dos Estados Unidos e esses então, graças à uma série de manobras, conseguiram tirar o brasileiro do cargo à força.

Não há a menor dúvida de que sua “degola” teve uma relação direta com a guerra no Iraque, que a administração Bush deseja tão ardentemente. Por isso, tentei em vão entrar em contato com o embaixador Bustani durante toda esta semana para ouvi-lo sobre a atual crise. Imagino que ele esteja em trânsito preparando-se para assumir seu novo posto diplomático.

Por este motivo, fiz uma longa pesquisa sobre tudo o que foi noticiado na época de sua destituição da OPAQ e reproduzo aqui um pequeno resumo para refrescar a memória do leitor.

Durante os cinco anos em que esteve à frente da organização, Bustani elevou o número de países membros de 85 para 145, realizou mais de 1,2 mil inspeções em 50 países e conseguiu reduzir significativamente o estoque de armas químicas no mundo. Considerava como parte de suas funções, trazer para a organização o maior número possível de países a fim de aumentar cada vez mais o controle do arsenal mundial.

Em uma entrevista dada na época ao jornalista Argemiro Ferreira, Bustani conta que os Estados Unidos sempre exerceram um certo controle sobre a OPAQ, mas que piorou com a chegada de Bush Junior ao poder. Bustani tinha a firme intenção de inspecionar os EUA, detentores do segundo maior arsenal

de armas químicas do mundo (30 mil toneladas), depois da Rússia (40 mil toneladas), mas não conseguia. Segundo o diretor da OPAQ, os americanos queriam que ele assinasse relatórios em branco sobre inspeções que não foram feitas.

Bustani tinha um estilo independente demais para o gosto da novo ocupante da Casa Branca e a gota d água foi tentar atrair o Iraque para dentro da entidade. Como ele mesmo explicou à revista Isto É e à rádio holandesa Nederland em abril de 2002, entrando para a organização, o Iraque passaria a ser regularmente visitado pelos inspetores da OPAQ e uma solução pacífica tiraria dos EUA o principal argumento para um ataque armado contra o Iraque. (Sinal de que a guerra contra o Iraque já estava mais do que decidida naquela época.)

Foi a partir de então que os EUA começaram a exigir a saída de Bustani da direção da OPAQ. O diplomata brasileiro resistiu corajosamente e recusou-se a pedir demissão forçando os americanos a convocarem assembléia extraordinária para “votar” a destituição de Bustani, sob a alegação de “má administração”.

Diferentes meios de “persuasão” foram empregados sem disfarce. A diplomacia americana chantageou, cobrou fidelidade de governos subalternos, pagou a dívida de países endividados, principalmente da Ásia, América Central e África (segundo as regras da OPAQ, só podem votar os países que estiverem em dia com suas contribuições), e acabou conseguindo 48 votos a favor do afastamento de Bustani. Quarenta e três países se abstiveram, entre eles a França (os outros países da Comunidade Européia votaram a favor) e apenas 6 votaram contra : Brasil, China, Rússia, Cuba, Irã e Índia.

Embora o Brasil tenha votado contra a destituição de Bustani, o Itamarati se apressou em lançar comunicado oficial deixando claro que o diplomata não agia em nome do governo brasileiro, pois estava licenciado dos quadros da diplomacia brasileira enquanto exercia mandato em uma entidade

internacional. Segundo as informações que recolhi, o governo FHC, para evitar tensões com os EUA, manteve Bustani “na geladeira” após seu afastamento da direção da OPAQ, privando-nos da grande experiência internacional deste diplomata (felizmente Lula corrigiu o erro confiando-lhe uma das embaixadas mais cobiçadas pela diplomacia).

A ingerência americana na OPAQ foi apenas mais um exemplo do desprezo que a atual administração dos EUA demonstra pelos organismos multilaterais e pelos tratados internacionais. Além da Convenção de Armas Químicas, eles sabotaram também o Protocolo de Kioto, o Tribunal Internacional e parecem prestes à fazer o mesmo com o Conselho de Segurança ameaçando atacar o Iraque mesmo se houver veto.

José Maurício Bustani é considerado hoje como uma das personalidades que mais colaboraram para o desarmamento no mundo nos últimos anos. Diante da perspectiva de uma guerra no Iraque, sua indicação para o Nobel da Paz seria uma mensagem clara de que a solução para a crise iraquiana é a negociação.

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Vou continuar tentando entrevistar o embaixador Bustani e se conseguir, voltarei ao assunto.

Sobre o autor: Foi apresentadora nas TVs Bandeirantes e Record. Vive em Paris desde 96 onde foi correspondente do SBT e da CBS Telenotícias Brasil.

Realiza filmes e documentários para emissoras de TV e produtoras brasileiras.

02/03/2003