Por Paulo Moreira Leite, em Brasil 247 

Feira_MST_SP

Num país em esforço permanente para encontrar um destino civilizado, a III Feira Nacional da Reforma Agrária produziu um marco histórico e um exemplo.

Encerrada na noite de domingo, ao longo de quatro dias a Feira levou 260 000 pessoas ao Parque Água Branca, uma das mais antigas áreas públicas de São Paulo. Neste período, a praça de alimentação ofereceu 75 iguarias diferentes. As barracas de agricultores e feirantes comercializaram 420 toneladas de 1530 produtos. Na feira de livros, eram vendidas obras primas da ficção mundial e brasileira, além de raridades da literatura revolucionária do início do século XX, as vendas são estimadas, também, em várias toneladas.

Inaugurado em 1929, o ano do crack da bolsa de Nova York e do anoitecer da República Velha, que no ano seguinte seria derrubada por Getúlio, o Parque nasceu como um local de ares elitistas, conservados até hoje numa arquitetura de estilo normando, própria para países de clima bem mais frio do que o nosso.

Seus idealizadores eram homens da Sociedade Rural Brasileira, nascida para defender os interesses da velha elite do café e que, mesmo dedicando-se a um leque mais variado de produtos, nunca abandonou a missão orginal, inclusive nos na Constituinte de 1988.

Exatamente 100 anos depois da abolição da escravatura, a SRB foi uma das forças mais articuladas de Brasília para um combate sem tréguas à reforma agrária. Como esta é, justamente,  a razão de ser do MST, havia uma obvia ironia no evento desses quatro dias, quase um aviso de que algumas mudanças históricas podem ser adiadas e retardadas, mas dificilmente serão impedidas.

Formado há 34 anos, hoje uma das principais organizações engajadas na defesa dos direitos do presidente Lula, a bandeira do MST estava em toda parte do Parque.Inclusive numa área reservada, onde personalidades convidadas e artistas — foram mais de 350 nos quatros dias -eram recebidos antes e depois das respectivas apresentações.  Na noite de domingo, o coordenador do MST e seu líder histórico, João Pedro Stedile, se dedicava a um afazer menos conhecido. A frente de três grandes panelões, Stedile comandava o preparo de um arroz carreteiro que, posso testemunhar, tinha um sabor grandioso  como poucas vezes se viu. “É uma velha receita de família”, disse ele ao 247, no momento em que a iguaria — o nome é adequado, sim senhor — era servida aos integrantes da Unidos do Tuiuti, campeã moral, artística, política, o que mais você quiser, do carnaval 2018.

“Estamos abrindo um espaço de diálogo com a população de São Paulo”, afirma João Paulo Rodrigues, coordenador nacional do MST.

Quem frequentou o parque Água Branca no final da década de 1950, início de 1960, guardou a lembrança de um ambiente público, aberto a quem quisesse entrar, mas nem tanto. Ali era o local de encontro não para os homens e mulheres simples da cidade, muito menos para o lazer trabalhadores rurais, mas um ambiente sob medida para grandes fazendeiros, seus descendentes e protegidos, a começar por sua área central —  um campo de areia, já usado para aulas de equitação e que no passado também serviu para concurso de animais de raça.

Mais tarde, animado pelas ondas universais do ambientalismo, no Parque se formou um ponto de encontro para a venda de produtos orgânicos e uma militância aguerrida, que incluiu a organização de protestos contra uma reforma ensaiada pela primeira dama de um dos inúmeros governadores de São Paulo que o PSDB já possuiu.

Nos quatro dias da Feira da Reforma Agrária, a área de equitação virou o coração da festa. Foi ali que, na noite de domingo, Martinho da Vila se apresentou. Militante político desde os tempos da ditadura militar, onze dias antes Martinho inscreveu seu nome na lista de personalidades impedidas de visitar o presidente Lula, encarcerado em Curitiba. Em São Paulo, ele empolgou a platéia quando cantou o clássico “Pequeno burguês”, uma denúncia do ensino privado atualizada apelos cortes de Temer-Meirelles no crédito educativo, e provocou uma vibração especial quando puxou o coro “Lula Livre”.

Havia música e dança em outros lugares, também. À beira de um lago de águas escuras que serve de criadouro de carpas imensas, era possível participar de uma roda aberta de baião, onde todos dançavam até cansar. A poucos metros,  um trio de saxofone, pandeiro e violão, entoava chorinhos, com delicadeza e um visível esforço para não sair do tom. Quando ocorreu um pequeno deslize, um dos músicos lamentou, bem-humorado, com a certeza de que todos estavam entre amigos:  “eu disse que precisávamos ter ensaiado antes”.

Tenho certeza de que, um dia, cenas que vi ontem no Parque Agua Branca estarão num filme brasileiro sobre esses dias difíceis e perigosos que o país atravessa, quando tudo parece perdido mas onde muitas pessoas não desistiram de tentar ser felizes. Quero ter a chance de ouvir de novo a conversa de duas irmãs que, no 1 de maio, tomaram o ônibus noturno para uma viagem de seis horas até Curitiba, aonde explodiram os pulmões de tanto gritar “Lula Livre!” em frente a sede da Polícia Federal. Depois, passaram uma noite na casa de uma moradora  local que ofereceu hospedagem e  voltaram a São Paulo com a certeza de que tinham acompanhado um momento da história de suas vidas que nunca mais vai se repetir. “Todo mundo deveria fazer isso,” dizia uma delas, sentada numa mesinha perto da roda de baião. “Todo mundo”. Por que?, pergunto. “Quem não entendeu o que é o Lula não entendeu nada. Nada. É isso que estou explicando para meu filho. Ele tem 17 anos”.

Momentos especiais como esses costumam estimular um ambiente de sonho mas a realidade do momento político não costuma perder a chance de produzir provocações e atos de intimidação. Logo depois de desembarcar numa casa das redondezas, onde ficariam hospedados durante a feira, um grupo de sem-terra foi chamados a prestar depoimento numa delegacia. É que, ao ver aquelas pessoas de camisa vermelha, bonés e bandeiras, um vizinho não achou possível que fossem inquilinos. Convencido de que se tratava de uma invasão, fez uma denúncia à policia. “Foi só começo de uma longa jornada,” conta uma advogada que acompanhou o caso. “Quando explicamos que o imóvel fora alugado, quiseram ver o contrato. Quanto mostramos uma cópia do contrato, quiseram o original. E quando viram o original, pediram uma cópia autenticada. Dá para entender, né?”

Às 10 da noite de sábado para domingo, um grupo de 40 feirantes do Ceará e de Pernambuco voltava para Cotia, nas vizinhanças de São Paulo, aonde estava hospedado. No meio do caminho, o ônibus no qual viajavam foi interceptado por um carro, que surgiu de repente na entrada, forçando uma parada brusca. Já de fora do carro, um deles disse ao motorista: “aqui sem-terra não entra”. É claro que o ônibus dos feirantes acabou abrindo passagem, após a chamada da polícia e de negociações que se prolongaram — estranhamente, dado o absurdo da cena — por mais de uma hora.  Mas a imagem vergonhosa do fascismo permanece.