[Por Sylvia Moretsohn em 23.02.2019] Vendo a vergonhosa cobertura da RTP sobre o conflito na Venezuela (e me custa dizer isso, considerando a memória que tenho da excelência da cobertura da invasão do Iraque, mas isso tem tanto tempo e as coisas mudam), vendo a insistência em mostrar a imagem do ônibus que encenava (e pelo menos isso a TV dizia: que era uma encenação, mas uma coisa é o que se diz, outra é o que se mostra) o trajeto para cruzar a fronteira entre a Colômbia e o país vizinho para entregar a tal “ajuda humanitária”, vendo a insistência na exibição da imagem de um caminhão incendiado (e sobre isso voltarei ao final do texto), não pude deixar de me recordar do que dois correspondentes internacionais portugueses, muito diferentes entre si, relataram de sua experiência na cobertura de encenações em cenários de guerra.
O primeiro relato, de José Rodrigues dos Santos, em seu livro sobre “A verdade da guerra”, sobre a movimentação das tropas americanas no Kuwait, durante a primeira guerra do Golfo:
“Foi nessa altura que começou um estranho espectáculo. Um oficial americano fez um sinal e os jornalistas começaram a correr, largando a estrada alcatroada e acelerando em direcção das tropas que tinham desembarcado. Corríamos desajeitadamente, e os Marines permaneciam deitados no chão, as metralhadoras e as bazucas apontadas para nós. Fotógrafos e operadores de câmara rodearam as tropas à procura de imagens, enquanto os soldados permaneciam quietos, o olhar fixo no infinito ou na mira da metralhadora, em pose heróica e determinada. Havia uma média de três jornalistas para cada Marine, e o espectáculo tornou-se cómico”
Porém, ao regressar ao hotel e conferir as imagens gravadas pelo cinegrafista, o repórter se surpreendeu:
“(…) em nenhuma imagem se viam jornalistas. A cassete estava recheada de Marines em posição de combate, metralhadoras em riste, olhares firmes à Clint Eastwood – tudo, excepto o que eu vira. Os jornalistas, as câmaras e as máquinas fotográficas apontadas não se encontravam nas imagens. O cómico circo mediático estava ausente. Em compensação, nas imagens transbordavam ameaçadoras posições bélicas. (…)
Numa primeira reflexão, aquele parecia um extraordinário exercício de manipulação (…). Ao efectuar aquele exercício em Mutla, o primeiro em solo kuwaitiano desde o início da crise, as forças armadas americanas tinham como único objectivo impressionar o Iraque – e conseguiram-no com apenas um pelotão de Marines e a cumplicidade mediática. Mas, pelo menos neste caso, é uma cumplicidade inadvertida, quase inconsciente. Como é evidente, o operador de câmara libanês [que estava a serviço da RTP], tal como a generalidade dos seus restantes colegas no local, não estava em conluio com as tropas americanas. O que se passara é que ele, por pressões editoriais já interiorizadas, procurou captar as imagens mais espectaculares, tentou obter o lado estético do que estava a acontecer. E, claramente, os jornalistas a rodear os soldados emergiam como ruído na imagem. Ele procurou então ângulos em que os repórteres estivessem ausentes, e os Marines omnipresentes.”
O segundo, de Carlos Fino, no Afeganistão:
“Durante muito tempo, a partir de outubro, novembro, não se estava a passar nada, havia um completo impasse na frente de batalha, apenas tiros esporádicos, mas havia uma espécie de visita guiada à frente de batalha. (…) E quando se chega à frente de batalha os caras estão lá sem fazer nada porque não há batalha, há um impasse há meses, e os caras dizem, ah, são repórteres, querem aquela corridinha de costume, e os caras correm uma corridinha pela trincheira, e nós fazemos um vivo junto à trincheira, grande repórter de guerra! E eles atirando, não é?, dão uns tiros, pra ser mais real.”
Então vemos essas cenas que a RTP, hoje, transmite acriticamente na fronteira com a Venezuela. A cargo de um repórter que foi âncora durante a cobertura da mal chamada segunda guerra do Golfo, porque foi a invasão do Iraque por Bush e seus aliados.