reforma psiquiátrica
[Por Telma Gil/ NPC] A professora e assistente social Rita Cavalcante, da Escola de Serviço Social da UFRJ (ESS-UFRJ), é pesquisadora e especialista da Política de Saúde Mental, Álcool e outras drogas. Ela assina uma avaliação crítica à Nota Técnica 11/2019, da  Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e Drogas  do Ministério da Saúde. A Nota Técnica, por ela criticada, reorganiza a política pública de saúde mental e acompanhamento a dependentes de substâncias psicoativas, como álcool, maconha, cocaína, crack e outras drogas. Na avaliação da pesquisadora, a Nota desconsidera o Art. 4º da Lei da Reforma Psiquiátrica, que prevê que “a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”. Nessa entrevista, ela fala sobre o retrocesso que representam as mudanças apontadas no documento, o ataque à constituição e os impactos de uma política que não resulta de um debate público. “Como pesquisadora e militante da saúde mental, desconheço onde e quando esse diagnóstico do Ministério da Saúde foi colocado em espaços públicos de debate técnico e acadêmico no plano nacional”, afirma. Conta, ainda, que a luta pela Reforma Psiquiátrica fez parte da luta pela democracia no Brasil. | Confira.


Professora Rita, você acha que a Nota Técnica é fruto de um processo ou ela “inaugura” uma nova fase para essa política pública?

A Nota Técnica faz parte de um retrocesso da política de saúde mental, que vem combinando o desfinanciamento da Rede de Atenção Psicossocial, desde 2011, e a organização do lobby de dois grupos articulados: um, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), e, o segundo, as comunidades terapêuticas.

Esse lobby se fortaleceu durante a crise política do Governo de Dilma Rousseff e ocupou a Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde. Era 2015 quando foi nomeado o ex-Diretor do maior manicômio da América Latina, o médico Valencius Wurch Duarte Filho. Ele é conhecido por ter dirigido a Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi, espaço onde pacientes internados sofreram com eletrochoques, fome, não acesso à água potável e óbitos evitáveis. Com a enorme pressão do Movimento Antimanicomial, este coordenador caiu, sendo exonerado no ano seguinte.

Contudo, a Nota Técnica, em questão, expressa essa trajetória de atraso e, ao mesmo tempo, o aprofundamento da contrarreforma da política de saúde mental orientada por este lobby. Como já dito, esse lobby se baseia no retorno à assistência hospitalar e ambulatorial, sem vínculos com os contextos de vida dos usuários e de seus familiares.

 

Em que aspectos o seu conteúdo não respeita a Constituição?

A Nota Técnica tem uma redação que diz não ferir os preceitos legais, como o da Lei Nº 10.216, de 2001, sustentada pelo Art. 196 da Constituição Federal. Esse artigo diz: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Porém, a Nota, de fato, desconsidera o Art. 4º da Lei da Reforma Psiquiátrica, que prevê que “a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”. Ora, por que a Nota Técnica retornou com o hospital psiquiátrico, instituição marcada pela centralidade do poder médico, pela monoterapia farmacológica e pelo isolamento, se a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) já previa diferentes serviços com leitos territorializados, como os dos hospitais gerais, dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), além dos serviços residenciais? Como retornar o hospital psiquiátrico no âmbito do financiamento do SUS, quando toda a RAPS se encontra sob desfinanciamento?

Trata-se, portanto, de uma escolha do Ministério da Saúde em ferir a defesa da Reforma Psiquiátrica, quando esta substituiu o hospital psiquiátrico, produzindo o cuidado onde as pessoas vivem e buscando evitar o estigma.

Por que vocês afirmam que a Nota desconsidera o histórico da Reforma Psiquiátrica no Brasil?

O texto da Nota Técnica defende uma “ciência por evidências”. Esse é um movimento internacional que vem sendo apropriado por frações da medicina, com o objetivo de retomar o seu domínio e a negação da contribuição de outras áreas das ciências, como o das Ciências Sociais.

A Reforma Psiquiátrica, no interior da Reforma Sanitária, colocou em xeque a hegemonia do saber e do poder médico que não estranhava o isolamento produzido pelas internações no hospital psiquiátrico, o consequente estigma sobre o louco tomado como perigoso a priori, o recorrente uso do eletrochoque e o óbito dos pacientes por desassistência. Então, a Reforma Psiquiátrica não foi simplesmente uma modernização assistencial, mas uma ruptura cultural, epistemológica, assistencial e, também, legal, como afirma o pesquisador Paulo Amarante da FIOCRUZ.

A Reforma passou a reivindicar e a tecer muitos lugares existenciais e sociais para as pessoas com algum sofrimento psíquico.

Quais são as consequências de uma política resultante de uma decisão restrita, que não se caracterizou por um debate público?

A política de saúde mental está no grupo das disputas das políticas sociais, que vêm violando, de forma recorrente, as decisões definidas no âmbito do controle social. Estamos em período de realização das conferências distritais de saúde, cujo cenário político já indica os desafios para sustentar voz e voto nesses espaços. Para piorar, alguns dos nossos políticos usam a matemática para afirmar, por exemplo, que ao ser eleitos por 120 mil pessoas para ocupar uma cadeira como Deputado Federal, não precisam respeitar a deliberação de 3.000 delegados vindos do País inteiro. Ou seja, a velha política oligárquica do nosso País continua a ameaçar a democracia usando o pleito eleitoral como democracia.

A Nota Técnica, nesse aspecto, é uma expressão. O documento tem a ousadia de afirmar que  “as medidas atendem a anseios de movimentos sociais, aos desafios enfrentados diariamente por profissionais da RAPS e às necessidades apontadas em um diagnóstico inédito feito pelo Ministério da Saúde” (2019: 5). Fazer referência aos movimentos sociais é abusivo, na medida em que estes não podem ser reduzidos às associações e às organizações corporativas, como a ABP e as comunidades terapêuticas. Segundo, a Nota citou os anseios dos trabalhadores da RAPS sem delimitar quando, onde e sob que representação nacional se baseou para reivindicar essa autoridade de protagonismo. E, por fim, como pesquisadora e militante da saúde mental, desconheço onde e quando esse diagnóstico do Ministério da Saúde foi colocado em espaços públicos de debate técnico e acadêmico no plano nacional.

Então, a consequência dessa contrarreforma na política de saúde mental é reatualizar o velho como moderno. Dessa forma, continuam o desfinanciamento da rede territorial e comunitária e fortalecem-se os serviços autocentrados, como o hospital psiquiátrico. Isso aumenta os riscos de fortalecer o estigma sobre as pessoas com transtorno mental e retoma a subordinação de outras profissões ao poder psiquiátrico. É um cenário muito preocupante!

Pode-se afirmar que a ênfase nesta normatização está na valorização das internações, como modelo já ultrapassado de tratamento aos transtornos mentais?

Seguramente, pelas razões evocadas acima.

A motivação seria a mesma para a separação da Política de Saúde Mental da Política de Álcool e Drogas – agora sob a responsabilidade do Ministério da Cidadania?

A saúde mental, no início dos anos 2000, liderou um movimento de disputa sobre a direção dada à política de drogas no Brasil, o que foi muito positivo. Quando o Ministério da Saúde afirmou que o uso de drogas era uma questão de saúde e não de política criminal, isso gerou um rebuliço! Até porque a ideia de que a ilegalidade nos protegia dos efeitos nocivos das drogas ainda era muito sustentada por agentes da saúde.

Ocorreu que, em 2003, o Ministério da Saúde passou a disputar a liderança da política de drogas e a integrou aos princípios e à rede da saúde mental. Também manteve a orientação ética da redução de danos para o cuidado das pessoas com usos prejudiciais relacionados às drogas. Ora, isso alterou o modelo então vigente, marcado pela monoterapia da internação e da abstinência total para todas as pessoas que pedissem tratamento.

Então, o lobby das comunidades terapêuticas, assentadas numa abordagem religiosa missionária, vem requerendo o retorno da separação institucional da política de drogas com a saúde mental. As pesquisas sobre esses serviços, promovidas por esses grupos, indicam o uso da oração, da laborterapia e da disciplina como meios cotidianos de intervenção. Como isso pode ser tomado como serviço público de saúde?

A própria Nota Técnica indica dois elementos centrais para identificar aquela separação da política de drogas com a da saúde mental no Brasil. Primeiro, reafirma a presença das comunidades terapêuticas na RAPS. Segundo, antecipa a posição contrária à legalização das drogas, como se as diferentes experiências internacionais de legalização controlada das drogas atestassem incompatibilidade ou piora dos indicadores sociais e da saúde.

Gostaria que comentasse sobre a afirmação de que a Reforma Psiquiátrica é patrimônio do povo brasileiro…

Bem! A Reforma Psiquiátrica foi forjada no interior da luta pela redemocratização do País, a partir de finais dos anos de 1970. Ela participou e se beneficiou da Reforma Sanitária, gerando o maior sistema público de saúde do mundo sob as diretrizes da universalidade, da gratuidade e da integralidade do cuidado. A saúde mental criou a sua rede no processo de implantação do SUS, patrimônio das lutas sociais. Portanto, a nossa resposta à Nota Técnica, como pesquisadores, fez essa assertiva e nos manteremos da luta republicana para que, ao menos, não tenhamos nenhum direito a menos!