mortecomcep

[Por Tatiana Lima/ para o BoletimNPC] “Se esse fosse um país sério, a gente estava botando fogo nas ruas”. A fala de Emicida num programa de TV é a mais absoluta verdade. Se esse fosse um país sério com seus cidadãos, a gente estava colocando fogo nas ruas em revolta popular igual quando a polícia atirou em um jovem negro em Londres no ano de 2014. Mas aqui a gente duvida da vítima. A gente acha normal matar preto. Acha um erro ok, plausível e viável soldados dispararem contra um carro em meio a uma via urbana povoada. Sobretudo quando esse motorista é preto. Mesmo que sejam disparados 80 tiros. Mesmo que soldados debochem. Mesmo quando se mata um pai na frente do filho de sete anos. E sabe por quê? Porque é ok matar preto. Mais ok ainda sob o argumento da segurança pública.

Alguns vão dizer que é o medo. Eu estudo “cultura do medo” há 10 anos e garanto: não é só isso. É fato que a população carioca está inserida numa cultura do medo tão grande por causa dos índices de violência e tão densa pelo medo de ser vítima que adere à barbárie como resposta. Muita gente pensa: “ainda bem que não foi a gente” ou “podia ser bandido mesmo e podia ferir um de nós. Então, eles estavam fazendo o trabalho deles. Tentar dar segurança. Fazer o quê? Acontece”. Enfim, por trás disso tem o racismo. A cultura do medo tem cor aqui. E no Rio de Janeiro tem CEP.

Um dos bastidores dessa cultura do medo é o velho medo branco, não é apenas o índice de violência ou a insegurança do ir e vir por conta de casos de violência. É racismo. É por isso que as ruas não estão queimando! Porque o corpo do morto dentro do carro é preto. Tão preto para a sociedade carioca que pode ser colocado em dúvida se ele merecia ou não ter morrido. É colocado em dúvida o direito ao luto. E por essa dúvida do direito do enlutamento, as ruas estão em silêncio.

Preto tem lugar eterno de suspeição na cabeça da população branca e até da tal parda, que não se enxerga como preta porque foi ensinada a não se reconhecer como tal. Preto é suspeito mesmo que esteja dentro da caixinha da tal figura de “cidadão de bem”, inventada em coluna de jornal e que hoje se tornou uma entidade no senso comum de qualquer bate papo informal. Porque esse cidadão de bem tem cor no corpo. Ela tem a marca. Ela tem o estigma.

E todo dia quem é preto neste país é lembrado disso. Mesmo quando se vê como pardo e tem uma vida parda, porque o fim da vida dele pode ser no chão com o corpo ensanguentado após ser vítima de violência. A real é que você pode até viver como pardo, mas, no racismo que permeia nossa sociedade e a cultura do medo carioca, você tem chances enormes de morrer como preto: fuzilado pelo Exército na gestão da morte por CEP e COR que o Estado faz.

Então, é por isso que as ruas estão silêncio. Mesmo com um homem fuzilado em frente ao filho de 7 anos, a mulher, o sogro e a afilhada de 13 anos, a caminho de um chá de bebê num domingo à tarde. As ruas estão em silêncio porque as ruas são racistas. A cidade segue seu dia a dia normal e não se manifesta não é porque as pessoas estão com medo de se manifestar nas ruas, é porque elas são racistas com práticas e pensamentos racistas em todos o ambientes de suas vidas. E para elas tudo isso que escrevo é absurdo porque elas não conseguem enxergar o racismo estrutural sendo parte delas. Então, essa pancada de palavras aqui é só mais um textão de mimi.

Mas eu sempre vou gritar: 80 tiros não é engano! Nem faz sentido ser. Engano é outra coisa. Engano é quando eu esqueço de pôr sal no arroz. 80 tiros também não é um erro. Erro é quando eu salgo o feijão. 80 tiros é fuzilamento! É exemplo da gestão da morte e da vida. É distribuição da morte por CEP e distribuição da desigualdade por CPF. Tudo gestado dentro de um protocolo de Estado que governa sob um urbanismo militar.

Tanto é que jornalistas da EBC agora foram proibidos de usar a palavra “fuzilamento” nas notícias relacionadas aos 80 tiros disparados pelo Exército, causando a morte desse preto, chamado Evaldo dos Santos. Porque esse Estado transformou a comunicação de uma TV pública em comunicação dedicada ao Estado. Nesta comunicação não há espaço para informação pública com o uso de verbos certos com conjugação adequada.

Para o Estado, É PRECISO seguir com a gestão do racismo de cada dia para manter as ruas vazias em nome da ordem! E os governos Bolsonaro e Witzel, no Rio de Janeiro, aceleram ainda mais essa máquina do racismo pela ordem.