Parte da história e da literatura antiga perdeu-se para sempre. O estudioso Fernando Báez relata a destruição cultural na Biblioteca Nacional do Iraque. Por Fernando Báez, outubro de 2004

Por onde começar? Por acaso o primeiro sinal, ou o último, de que algo ia mudar minha vida foi o telefone, que soou repetidas vezes em finais de abril. Alguém insistia por desespero ou capricho, e pensei que se tratava, sem dúvida, de engano. Sabe-se que números errados nunca estão ocupados, o que fazia do meu um número perfeito.

Quando respondi, pressionado pelo incômodo do timbre, nada do que eu imaginava, claro, se confirmou. Era Giovanny Márquez, um velho amigo meu, advogado especialista em bens culturais, e sua voz parecia longe, distorcida, descortês. Ele tinha voltado da Espanha com a notícia da destruição de um milhão de livros na Biblioteca Nacional de Bagdá (Dar al-Kutub wa al-Watha’iq).

Desesperado e deprimido, ele me explicou que uma comissão internacional iria ao Iraque para confirmar esta má notícia, com apoio da Unesco, do Centro de Estudos Árabes e outras organizações. Duas universidades latino-americanas, além disso, me haviam indicado como especialista no tema.

Márquez insistiu que eu devia ir porque, de fato, havia passado minha vida inteira dedicado a estudar o problema da biblioclastia, nome grego que se dá à destruição de livros, e era uma oportunidade única de comprovar o que aprendi. E foi assim que tudo, subitamente, assumiu um sentido que me era alheio.

Em princípios de maio de 2003, eu saía rumo a Paris e depois a Jordânia. De Amman, fui até um posto de Karama e, depois de percorrer 600 quilômetros da “estrada do medo”, até Bagdá.

Foi uma péssima viagem e, como era de se esperar, adoeci devido ao calor (a estas alturas as temperaturas chegavam aos 50 graus centígrados. Uma vez instalado no hotel, passei uma noite sem ventiladores nem água, mas me recompus; bem cedo eu soube que tinha pouco tempo e devia aproveitar cada minuto, o que me obrigou a recordar o conselho de meu antigo chefe, da época em que eu vendia enciclopédias e bíblias para poder estudar : o modo mais rápido de encontrar algo é buscar outra coisa.

Supunha-se que eu devia procurar a CPA (Coalition Provisional Authority) para perguntar aos norte-americanos sobre o ocorrido, mas desprezei esta opção, em claro desafio, e preferi dar uma espiada por minha conta, e meu próprio risco. Meu plano, na verdade, era o mais simples que se possa imaginar: ir, tomar notas, escutar aos empregados iraquianos partidários ou inimigos de Saddam Hussein. O que averigüei e vi, vale a pena advertir, me produziu uma insônia que ainda persiste. Teria sido melhor, talvez, esquecer, mas é esquecer para tudo de novo surpreenda. As ciladas da razão são as mais arteiras.

O que aconteceu na Biblioteca Nacional de Bagdá? Qualquer explicação que eu ofereça tem seu ponto de partida na visita que fiz à biblioteca, um edifício de três andares uniformes de 10.240 m2, com arabescos de madeira pelo meio, construído em 1977 e localizado em Rashid, paralelo ao antigo e deteriorado Ministério da Defesa (destruído durante os bombardeios de 1991). Quando cheguei, ainda estava de pé uma estátua de Saddam com a mão esquerda em gesto de saudação e a direita segurando junto ao peito um livro (ainda que não se acredite, Hussein, autor de vários livros, particularmente romances, era um leitor voraz e conseqüente. Sei que essa estátua foi derrubada, como todas as outras. Nas escadas da frente estava um grupo de soldados norte-americanos, alguns deles latinos. Fumavam suas bitucas com descaso e se divertiam com piadas rápidas. Não se viraram nem para me olhar. A fachada, no centro, sofreu danos pelo fogo, que chegou a queimar as paredes, deixando manchas negras enormes. Estourou as janelas com tanta força que imprimiu no lugar um ar melancólico.

Quase às onze da manhã de 10 de maio, entrei com meu grupo de trabalho. Éramos uns cinco ou seis, guiados por um coordenador. A porta tinha um cadeado gigante, que foi aberto com grande receio. A entrada, protegida do sol por uma saliência em cuja borda há algumas letras em árabe exaltando a fé e o nome da biblioteca, deixava ver no interior dezenas de trabalhadores e especialistas que trabalhavam no lugar.

E então sobreveio o que acreditei ser um pesadelo: encontrei uma atmosfera de guerra no mais crasso estilo. A luz, filtrada com reservas e ambigüidade pelas janelas, deixava à vista móveis destroçados por todas as partes e milhares de papeis no chão. A sala de leitura, o arquivo de madeira com o catálogo de todos os livros e as próprias estantes tinham sido literalmente arrasados, sem piedade. Mas enquanto eu continuava caminhando, as cenas aumentavam seu poder de comoção. A estrutura se mostrava tão severamente afetada que eu a julguei precária: dificilmente

suportaria o impacto de um mínimo tremor. Ainda havia cinzas por todo o chão. Os arquivos de metal estavam queimados, abertos e esvaziados em grande parte.

O saque da Biblioteca, segundo me disseram, foi precedido por alguns fatos desconcertantes. Primeiro foi o ataque a Bagdá, com bombas Moab e mísseis que destruíram mais de 200 edifícios públicos, dezenas de mercados e negócios. A operação foi chamada “Impacto e pavor”, e foi mantida durante os últimos dias de março. Em 3 de abril se iniciaram os combates no aeroporto Saddan Hussein, a dez quilômetros do centro. No dia 7 há havia tanques nas ruas. Até 8 de abril, as tropas norte-americanas já tinham controle de certas zonas de Bagdá, uma cidade bem grande se considerado que ocupa quase 28 quilômetros e conta com mais de 750 bairros.

Os ataques somados à informação de que o regime de Sassam Hussein havia caído e o presidente havia fugido com seus filhos para um esconderijo, provocaram uma confusão geral. Não havia polícia e os soldados norte-americanos tinha ordens expressas de não disparar contra civis nem atender pedidos sem relação com os objetivos militares. Na quarta, 9 de abril, a grande estátua de Hussein caiu na praça central. Um soldado chegou inclusive a colocar uma bandeira dos Estados Unidos na frente. Logo depois corrigiu seu gesto e a substituiu por uma bandeira iraquiana. Assim que estas imagens circularam e o rumo se confirmou, uma maré humana, reprimida por dez anos de bloqueio econômico e uma ditadura implacável, lançou-se às ruas sem controle.

O saque inicial foi contra os palácios e as casas dos chefes iraquianos. Dos hospitais foram levadas até as camas. Nas lojas, os comerciantes, armados com pistolas, fusis e barras de ferro, montavam guarda e afugentavam os ladrões, muitos deles jovens, crianças e mulheres. Não foram poucos os lugares, considerados símbolos do regime, que sucumbiram entre 9 e 10 à violência dos saques.

Foi no dia 10 que, vinda dos subúrbios, uma multidão se reunião na Biblioteca, que não estava protegida por nenhuma unidade militar. No começo predominaram a cautela e a pressa, depois o descaramento e uma anarquia impôs as regras do saque. Crianças, mulheres, jovens e velhos pegaram tudo que puderam, de um modo seletivo, como se tivessem ido às compras. O primeiro grupo de saqueadores, que contava com apoio externo, sabia onde estavam os manuscritos mais importantes e correu a pegá-los. Outros saqueadores, famintos e ressentidos com o regime deposto, chegaram depois, em busca de objetos valiosos, e provocaram o desastre subseqüente.

A multidão corria por todos os lados com os livros mais valiosos. Também carregavam consigo as fotocopiadoras, as resmas de papel, os equipamentos de informática, as impressoras, os móveis e máquinas doadas pela Unesco. Nas paredes, deixaram escritas mensagens como “Morte a Saddam”, “Morra Saddam”, “Saddam apóstata”. Inexplicavelmente, um câmeraman filmou sem pressa estes atos e depois desapareceu sem deixar rastros. É possível que qualquer dia possa*mos ver esta triste fita, que vai revelar um mistério tão curioso quanto o da queima da Biblioteca de Alexandria: como os saqueadores sabiam que as tropas norte-americanas não disparariam contra eles e por que alguns deles tinham listas com encomendas?

Os saques se repetiram uma semana mais tarde e, no dia 13, sem exagero, um grupo chegou em ônibus de cor azul, sem marcas oficiais e, alentado pela passividade dos militares que circulavam por ruas próximas, jogou algum combustível nas prateleiras e tocou fogo. É obvio que fizeram também piras de livros para incendiá-los; Segundo outra versão, eles usaram fósforos brancos, de procedência militar, para o incêndio, e há evidências que o confirmam. Passadas algumas horas,

uma coluna de fumaça podia ser vista a mais de quatro quilômetros e, nesse incêndio voraz, desapareceram as obras. Entre outros danos, arderam as velhas máquinas e alguns jornais. No terceiro andar, onde estavam os arquivos microfilmados, não sobrou nada. O calor, pelo que pude constatar, foi tão intenso que destruiu o piso de mármore e causou severos estragos nas escadas de concreto e no teto. Tudo se converteu em escuridão e, obviamente, em ruína. No mesmo ataque foi destruído o Arquivo Nacional do Iraque, na segunda parte da Biblioteca que contava, certamente, com uma equipe de trabalho de 85 pessoas.

Milhões de documentos desapareceram ( alguns falam de 12 milhões, outros de dois ou três), inclusive alguns do período otomano, como os registros e decretos.

Concluída a desastrosa pilhagem, não havia literalmente nada a fazer. O secretário de Defesa dos Estados Unidos, Donald Rumsfeld, à guisa de desculpa diante dos fatos, comentou que “o povo livre é livre para cometer vandalismos e não se pode impedi-lo”.

O diretor anterior da Biblioteca lamentou melancólico: “Não me lembro de barbaridade semelhante desde os tempos dos mongóis”. Ele aludia a 1258, quando as tropas de Hulagu, descendente de GengisKan, invadiram Bagda e destruíram seus livros, jogando-os no Rio Tigre.

É tal o estado de destruição no prédio da Biblioteca que os coordenadores culturais da CPA decidiram demolí-lo e utilizar outra sede, um palácio ou alguma instalação como o Clube Militar do Iraque. Disseram que levariam os livros à Universidade Bakr. Os arquivos, por sua vez, poderiam ficar em um lugar diferente, e o que foi salvo é mantido em sacos, sem que nenhuma medida oficial de preservação tenha sido tomada.

Uma grande dúvida se refere à situação lamentável que atravessam os empregados. Antes, havia 119 pessoas, dirigidas por Khamel Djoad Hachour. Seus salários, pagos com mesquinharia, não garantiram sua estabilidade no emprego. Quando às perdas, devo assegurar que mais de um milhão de livros foram queimados, o que deve ser somado à grande quantidade de textos perdidos. A Biblioteca, além de cuidar do depósito legal, constava de três partes: impressos, jornais e arquivos. O depósito legal consistia na entrega de cinco exemplares (de cada livro), embora a situação econômica tenha reduzido consideravelmente esta prática. Milhares de doações enriqueceram o centro durante anos. A entrada do Arquivo Nacional, hoje fechada com cadeados, mostra os sinais de uma queima terrível (parece a porta de uma elevador em ruínas) e os destroços de tudo que existia em seu interior.

No batente, alguém colocou um letreiro com um aviso: “Silêncio”. Papéis e país jazem sobre o piso, em cinzas. é difícil dizer, a estas alturas, que livros foram destruídos e quais não. Nas ruas, nas lojas de livros, pode-se conseguir volumes da Biblioteca Nacional a preços irrisórios. Nas sextas-feiras, na feira da rua Al-Mutanabbi, estas obras são postas à venda. Pessoalmente, pude ver um volume de uma enciclopédia árabe com o selo oficial estampado em sua lombada. Houve uma tentativa de apagá-lo, sem êxito. Também encontrei um volume intitulado Miskhaf Resh (Livro negro), sobre a cultura dos ywsidíes, um grupo religioso que habita o norte do Iraque. Trata-se de uma etnia estranha,conhecida como “adoradores do diabo”, por causa de sua fé em Melek Taus, o “Pavão Real”.

Os yesidíes explicam que Deus já perdoou o diabo e que este vive ao seu lado. Por motivos simbólicos, detestam a cor azul, constroem templos nos lugares de peregrinação e não vão à Meca, mas à tumba do Sheiki Adi, perto de Mosul.

Entre outros textos, desapareceram edições antigas de As Mil e uma noites, dos tratados matemáticos de Omar Khayyam, os tratados filosóficos de Avicena (em particular seu Canon), Averroes, Al Kindi e Al Farabi, das cartas de Sharif Hussein de La Meca, textos literários de escritores universais como Tolstoi, Borges, Sábato, manuais de história sobre a civilização suméria… É surpreendente, e o afirmo como a maior crueldade, que a primeira destruição de livros do século XXI tenha ocorrido na nação onde o livro foi inventado, em 3200 a.C.

Felizmente, salvaram-se numerosos livros transportados para lugares secretos ou escondidos em zonas mais

distantes da Biblioteca. A história deste esforço de salvar os volumes confirma o imenso amor que os iraquianos sentem por sua cultura. Hoje perduram, por exemplo, 500 mil volumes armazenados no primeiro e segundo andares, em pilhas sem classificação. Não contam com proteção, porque os soltados já não protegem o prédio. Esta tarefa foi passada a alguns empregados shiitas; Além destes livros, Al-Sajid Abdul-Muncim al Mussawi, líder religioso, ordenou a seus fiéis resgatar da Biblioteca quase 300 mil livros que foram transportados em caminhões até a mesquita de Haq, onde foram amontoados em pilhas intermináveis que chegam ao teto, em alguns casos.

Eu não hesitaria em advertir que as condições são péssimas e é provável que diversos insetos comecem a atacar os textos, mesmo que Mahmud al-Sheikh Hajim, seu protetor, pense que teria sido pior sua destruição. O curioso é que o grupo que salvou estes livros alegue pertencer ao um Colégio de clérigos shiitas, melhor conhecido como Al-Hawza al-Ilmija. Para estes religiosos, os livros são sagrados.

Mesmo assim, há cerca de 100 mil libros mais em uma instalação que pertenceu ao Departamento de Turismo. E vários intelectuais me mostraram livros ocultos em suas casas, até que a ordem se restabeleça ou que partam os “estrangeiros”. Um pintor que não quis identificar-se comprou, nas feiras de livros, dezenas de textos só para poder protegê-los. A maior parte está depositada onde antes se conhecia como Cidade Saddam, um bairro pobre que abriga mais de dois milhões de seres humanos amontoados em labirintos pouco vistosos.

Além desta Biblioteca, houve outras perdas em Bagdá. No Museu Arqueológico, foram saqueadas táboas com as primeiras mostras de escrituras. Arderam mais de 700 manuscritos antigos e 1.500 se dispersaram na Biblioteca Awqaf, no Ministerio de Assuntos Religiosos, cujo prédio ficou em ruínas. Na Casa da Sabedoria (Bayt al-Hikma), centenas de volumes foram exterminados pelo fogo.

Na Academia de Ciências do Iraque (al-Majma’ al-‘Ilmi al-Iraki), 60% dos textos foram extintos. A universidade foi vítima de bombardeios, incêndios e roubos. La Madrasa Mustansiriyya foi saqueada, mesmo que a porcentagem de perdas não supere 4%. Isto, só em Bagdá.

¿Quem provocou esta destruição? A maior parte da culpa foi atribuída ao governo atual dos Estados Undiso, que subestimou todas as advertências feitas e violou a Convenção deHaya de 1954, ao não proteger os centros culturais e ao estimular os saques, o que implica em sanções penais que não prescreverão. Talvez por isso, o presidente George W. Bush tenha solicitado imunidade para oficiais e soldados frente a qualquer possível julgamento nos tribunais penais internacionais. Talvez por isso decidiu reingressar na Unesco, e enviou sua esposa para negociar cargos executivos dentro desta organização, para despedir assessores mais incômodos, apagar seus expedientes e silenciar toda crítica.

Do mesmo modo, me atrevo a responsabilizar os membros do regime de Saddam Hussein por usar os centros culturais como bases militares e colocar bibliotecas ao serviço de uma ideologia. Com anuência dos dirigentes do partido Baa th, permitiu que se instalassem depósitos de munições e franco atiradores em pontos estratégicos, o que pois em risco o patrimônio cultural.

Devo assinalar que minha estadia em Bagdá foi concluída em 22 de maio. Parti rumo a Oxford e depois a Viena. Depois disso voltei, redigi novos informes , divulguei minhas reflexões e, desde então, tenho sido alvo de ameaças por minhas declarações e artigos, recebido insultos e desclassificações absurdas e todo meu trabalho tem provocado incômodos para a CPA. Meu ceticismo atual tem sua origem em um fato certeiro: a desordem e a violência crescente em Bagdá não tornam propícia a reconstrução, porque tendem a por em risco os volumes que foram salvos. Nenhuma biblioteca, e é preciso levar isto em con ta, estará a salvo enquanto Iraque for um campo de batalha. Observei com profundo mal estar que a propaganda norte-americana, entre outras coisas, não permite divulgar o que realmente acontece diariamente. Sabe-se que dois ou três soldados norte-americanos morrem a cada dia, mas não se divulgam as altas cifras de feridos e mutilados, não se diz que 40 soltados se suicidaram pelo horror do que vêem, não se informa que há mais de 30 ataques permanentes e os que colaboram com os ocupantes são linchados por seus vizinhos. Em setembro, Piero Cordone foi atacado e seu chofer morreu. O novo coordenador de bibliotecas sofreu um atentado e acabou cego porque um jovem jogou ácido em seu rosto. Há dezenas de bibliotecários detidos e os que trabalham temem contar a verdade completa. Sobre isto, não se diz nada. Por que? O que se tenta esconder?

Por acaso, a única resposta a estas perguntas, e eu a assinalo para terminar, deva ser encabeçada por uma epígrafe: «A primeira vítima da guerra é a verdade ». A frase, convêm lembrar, não foi dita por um filósofo ou um jornalista. Foi dita por um congressista norte-americano, Hiram Warren Johnson, em 1917. E o pior é que os acontecimentos de Hiroshima, Nagasaki, Vietnam, Etiópia, Líbano, Afeganistão e Irak não param de lhe dar razão.

Fonte: Revista Número – http://www.revistanumero.com -, revista cultural editada en Bogotá (Colômbia)