Por Lúcio Flávio Pinto, fevereiro de 2005
 

Dezesseis anos depois da morte de Chico Mendes, a Amazônia tem um novo mártir: é a missionária americana – naturalizada brasileira no ano passado – Dorothy Mae Stang, de 73 anos. Seu assassinato, no dia 12, em Anapu, no Pará, chocou o mundo. Por quatro circunstâncias agravantes no conjunto macabro das mortes por encomenda e da violência em geral que caracteriza o sertão paraense como o mais conflituoso do meio rural brasileiro.

Em primeiro lugar, por ser mulher. Em segundo, por ser idosa. Em terceiro, por sua condição de religiosa. E, em quarto, pela dupla nacionalidade, que a manteve como estrangeira. Mas há ainda um quinto fator de comoção humana: a forma da sua execução. Um dia antes de ser assassinada, irmã Dorothy foi, sozinha, ao acampamento onde estavam os dois pistoleiros contratados para matá-la. Mostrou saber com quem estava falando. Mesmo assim, leu para eles passagens da Bíblia, que sempre carregava consigo. Imaginou que os demoveria do intento sanguinário.

No dia seguinte, mais uma vez sozinha, irmã Dorothy deparou com os dois homens numa picada na mata, que levava ao assentamento ao qual vinha se dedicando. Sabia o que eles pretendiam. Novamente sacou de sua Bíblia e fez nova leitura. Um dos homens, que está sendo identificado como Rayfran das Neves Sales, mais conhecido como Fogoió, fez o primeiro disparo, contra a cabeça da missionária, que morreu imediatamente. Outros cinco tiros foram dados – por ele e por seu comparsa, Clodoaldo Batista – para conferir o “serviço” e mandar um recado aos outros alvos da sanha.

A cena caracteriza o martírio, ao velho estilo missionário da Igreja católica primitiva, que lutava pelos pobres, humilhados e ofendidos a partir das catacumbas. Nenhum dos pistoleiros dá a menor importância a esses elementos simbólicos. Nem, certamente, o proprietário rural que os contratou para tirar a incômoda religiosa do caminho. Mas esses componentes trágicos garantiram poder de irradiação mundial a mais uma das mortes anunciadas no sertão amazônico. Morta, por isso mesmo, irmã Dorothy conseguiu as respostas e as iniciativas que não lhe foram dadas em vida, embora tenha lutado por elas em quase metade da sua vida, desde sua chegada ao Pará, 33 anos atrás.

Daí o tom de vitória da sua imolação e a dimensão de santidade do seu testemunho. Se o Vaticano não colocar empecilhos no caminho, logo ela estará no rumo da santificação. Quem sabe, a atual geração não haverá de participar de uma festa única na jungle tropical: a consagração da primeira santa da Amazônia.

Chico Mendes se tornou, no ano passado, herói nacional. Irmã Dorothy poderá virar santa para os católicos de todo planeta. Mas não é só essa a diferença entre os dois mártires e suas circunstâncias. Quando o líder seringueiro começou a liderar os “empates” contra a derrubada dos seringais remanescentes do Acre, a devastadora frente pecuária já tinha perdido parte do seu fôlego e o Estado saíra perdendo na troca da borracha, já sem capacidade competitiva, pela criação de gado, sem qualquer perspectiva comercial e contra-indicada para as condições geográficas.

Pessoas rudes e violentas, como o fazendeiro Darli Alves da Silva, não atinavam para tais circunstâncias. Já que as mobilizações de Chico Mendes os impediam de expandir seus pastos, trataram de se livrar dele. Sem conseguir mudar a atitude do seringueiro, mataram-no, uma fórmula primitivamente bárbara que a ausência do poder arbitral (intimidador e repressivo) do Estado acaba por estimular. Os proprietários mais espertos – e mais poderosos – precisam apenas induzir os mais selvagens, tratando de eliminar os elos que poderiam transformá-los em cúmplices do crime, sobre cuja iminência estão sempre muito bem informados.

A morte de Chico Mendes, cuja ressonância foi ampliada por seus aliados internacionais, desviou do Acre a frente pecuária, mas os experimentos alternativos, com base nas reservas extrativistas, não conciliaram o Estado com seus ideais de progresso. O desmatamento foi reduzido e alguns processos sociais melhoraram, mas não o suficiente para tirar o Acre da condição de o mais pobre Estado da Amazônia. Logo, sem condições de ser modelo para a região.

Ainda que as mudanças ocorridas no Acre a partir de dezembro de 1988 tivessem tido uma expressão maior, com efeito multiplicador, a realidade do Estado o limita. Ele possui apenas 3% da extensão da Amazônia Legal e proporção equivalente de sua população. Seus 152 mil quilômetros quadrados apenas excedem 10% da área do Pará, o segundo Estado mais pobre da Amazônia, embora sendo o segundo em extensão, o primeiro em população (quase um terço do total) e já possuindo significado nacional como o quinto em geração de energia, o sétimo em exportação, o quarto em saldo líquido de divisas, um dos maiores mineradores do mundo, abrigando a indústria que mais consome energia no Brasil e a que mais produz alumínio em todo continente sul-americano.

Se tivesse sido morto no Pará, Chico Mendes não teria provocado o resultado que seu sacrifício alcançou, em função da solidariedade de ONGs (Organizações Não-Governamentais) internacionais e de pessoas influentes nos Estados Unidos. Outros líderes e militantes foram assassinados no Pará e o efeito de suas mortes foi efêmero. O impacto da execução de irmã Dorothy será mais duradouro e profundo?

A julgar pela primeira semana depois do assassinato, sim. Há os componentes específicos do drama e a própria figura da religiosa. Em mais de três décadas de atuação constante ao lado de posseiros, a missionária compôs um perfil de devoção integral a uma causa, sem qualquer mácula. Quando morreu, vivia de um rendimento de 500 reais por mês como agente da Comissão Pastoral da Terra, a CPT, sem qualquer cargo de mando. Os que eram prejudicados por sua militância a acusavam de ser radical, de não ouvi-los, de se tornar instrumento para ações desiguais contra todo e qualquer proprietário. Nos últimos meses, também começaram a difundir a informação de que ela fornecia armas aos clientes de um projeto de assentamento (um dos dois PDS – Plano de Desenvolvimento Sustentável – da área) que patrocinava, em Anapu.

Irmã Dorothy desarmava essas armadilhas com seu modo sempre firme de ser. Alguns a consideravam ingênua e outros, maliciosa; mas ela era simplesmente crédula. Acreditav

a em tudo que lhe diziam, mas ia conferir tudo com seus próprios olhos. Assim ela enfrentava os inimigos, muitos deles conhecidos por sua brutalidade. Como qualquer mártir, ia examinar os dentes do leão na boca do próprio leão. Essa característica de sua personalidade explica a atitude de ir até os pistoleiros e, diante da iminência da morte friamente executada, ler-lhes a Bíblia.

A acusação de armar posseiros nada tinha a ver com uma suposta alteração dos hábitos da irmã, mas com a preparação do ambiente para a providência que já estava em curso: acabar com ela. Atentos a esse sinal, amigos providenciaram a concessão de título de cidadã paraense para ela, seguido de uma honraria na OAB como defensora dos direitos humanos. Acreditavam que essas iniciativas serviriam como um contra-recado. Outros tentaram convencê-la a sair por uns tempos da área, mas ela recusou o conselho. Para ela, a morte era realmente a confirmação do dogma religioso: a passagem para uma vida melhor. Por que temê-la?

As características da execução, desencadeando uma onda de indignação e solidariedade que atravessou os continentes, forçou o poder público a responder ao crime. Brasília, mesmo com Lula fora do país (ou, talvez, por isso mesmo), saiu na frente, deixando um vácuo para a administração estadual paraense. Além das providências de praxe nessas circunstâncias, houve novidades, combinando a promessa de instalar uma espécie de gabinete federal da presidência em Belém (ou Altamira, ainda não há uma definição) e a interdição de áreas conflituosas (abrangendo 8,2 milhões de hectares), dentre as quais 3,7 milhões de duas novas unidades ecológicas na região conflagrada da Terra do Meio.

Se essas providências serão eficazes, as respostas dependerão da duração que elas terão e da disposição – combinada com competência – do governo para aplicá-las e impor sua vigência, contra a vontade dos poderosos locais, seja a raia miúda como os tubarões, de muito menor visibilidade e muito maior poder.

Tudo poderá voltar ao dantes, cessadas as ondas de interesse da opinião pública, ou o martírio de irmã Dorothy Stang poderá ser o sinal de um novo tempo. Talvez um milagre, matéria da intimidade de santos, quando eles têm quem lhes apregoe os feitos.

De qualquer maneira, está mais do que evidente que o Pará não é o Acre e Dorothy não é Chico Mendes. Os espaços são distintos, assim como os tempos são outros.
 

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Lúcio Flávio Pinto, jornalista, professor universitário aposentado, 54 anos, 38 de profissão. Tem 10 livros lançados. Todos sobre a Amazônia. Há 18 anos edita o tablóide independente Jornal Pessoal. Ganhador de quatro prêmios Esso, dois da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas Profissionais) e o maior prêmio jornalístico da Itália (o prêmio Colombe d´Oro per la Pace)