Com efeitos especiais de O Senhor dos Anéis e a apelação sangrenta de O Massacre da Serra Elétrica, a Paixão de Cristo faz o jogo dos poderosos. Acha que o pecado está nas vítimas da desigualdade, não nos criadores dela. Não é religioso. Muito menos, socialista.

Mark Kermode, crítico do jornal inglês The Observer, acha que o novo filme de Mel Gibson pode ser comparado aos clássicos do terror sangrento. O Massacre da Serra Elétrica, por exemplo. Não é exagero. As cenas de tortura, o sangue abundante, a pele arrancada à base de golpes de chicotes farpados, o capricho na encenação dos pregos atravessando as mãos de Jesus, a cruz sendo jogada de um lado para outro para “ajeitar” o corpo pregado à madeira. Tudo isso mereceria aparecer em mais um filme de terror para adolescentes. Infelizmente, não é só isso. A pretensão é ir além de um filme como Sexta-Feira 13. Mas o filme não fica acima disso e ainda quer passar uma visão conservadora da religião.

Gibson é daqueles católicos que tem nojo da Teologia da Libertação
Mel Gibson, diretor do filme, acredita na bíblia ao pé da letra. Rejeita as mudanças feitas pelo Concílio Vaticano II, realizado na década de 60. Rejeita, por exemplo a celebração da missa em outra língua que não seja o latim. É contra a exclusão da oração na qual os católicos rezavam pela conversão “dos pérfidos judeus”. Mais que isso, é o tipo de católico que tem nojo da Teologia da Libertação. Foi no Concílio Vaticano II que a Teologia da Libertação viu muitas de suas teses confirmadas. As teses da opção pelos pobres. A defesa da religiosidade como denúncia da desigualdade entre irmãos. Gibson é partidário do conservadorismo que defende a fé cristã como justificativa de uma vida luxuosa, baseada na exploração alheia. Mas antes de entrar nessa conversa, vamos abordar alguns detalhes do filme.

Mel Gibson disse em várias entrevistas que a sua versão é a mais fiel ao Novo Testamento. Não é bem assim. Meu conhecimento sobre o assunto é pequeno, mas não me consta haver descrições detalhadas das torturas sofridas por Jesus em nenhum dos quatro evangelhos. O filme dá-se ao trabalho de mostrar chicotadas que arrancam nacos de carne até alcançar os ossos das costelas do flagelado. O comandante do massacre chega ao ponto de suspender a surra apenas para que os carrascos virem o corpo de Jesus e sua parte frontal também receba a devida cota de açoites. 

Os evangelhos dizem que Jesus passou a ser torturado após Pilatos lavar as mãos. Mas no filme, o Cristo já aparece diante dele completamente desfigurado pelas chicotadas e pancadas. Pilatos surpreende-se com o estado de Jesus. Age como um comandante que se assusta com o exagero cometido por seus comandados. É com toda essa surpresa que entrega o destino do réu a raivosos judeus, cujo líder é o cruel Caifás. Este é outro problema sério do filme. 

É como dizer que um assassino como Sharon representa o povo israelense
Os judeus são mostrados como sanguinários perseguidores de Jesus. Isso poderia ser verdade para reis como Caifás, cuja popularidade o líder nazareno punha em xeque. Mas, o filme passa por cima do fato de que o desacordo entre judeus e cristãos não está no assassinato de um homem santo. Está na própria interpretação sobre a figura de Jesus. Diferente dos cristãos, os judeus entendem que Jesus é apenas um rabino rebelde. Não defendem sua crucificação. Mas, contestam sua condição messias. Já os que atacam os judeus, os consideram simples assassinos do filho de Deus. Esta é a base do anti-semitismo, o ódio racial contra judeus. É como dizer que um assassino como Sharon representa o povo israelense. O filme de Gibson pode reforçar essa idéia.

A presença abusada do demônio também é preocupante. Aliás, a figura maligna é representada por um tipo indefinido entre o feminino e o masculino. Uma possível referência à origem diabólica do homossexualismo? Vindo de quem vem, pode ser.

O diabo aparece na “paixão” de Gibson mais do que autorizaria a leitura dos evangelhos. É o caso da cena em que o demônio tenta Jesus enquanto este rezava no Jardim das Oliveiras e pedia a Deus: “Pai, afasta de mim esse o cálice”. Outro exemplo é a figura andrógina do Senhor das Trevas circulando entre a pequena multidão que assistia à tortura do Cristo. Em certo momento, ela aparece com um assustador bebê envelhecido no colo. Há uma cena em que Jesus é arrastado pelos soldados romanos logo depois de ser preso no Jardim das Oliveiras. Cai numa vala e fica de cara com uma figura demoníaca, antes de ser novamente conduzido pelos soldados. Nenhuma dessas cenas aparece explicitamente nos evangelhos. Mas todas elas lembram a aparência explícita que o mal assume em filmes como O Senhor dos Anéis.

O diretor age como se tivesse feito um documentário
Nada disso tem a ver com religião. É superstição. É o mal visto na forma de criaturas alheias às contradições que todos vivemos em nossas escolhas e circunstâncias humanas. Isso não seria um grande problema se o diretor do filme não agisse como se fizesse um documentário do calvário cristão. Uma coisa é mostrar duendes e sacis. Outra é abordar dessa maneira a religião mais influente do mundo ocidental.

Traços supersticiosos são muito comuns em alguns cultos evangélicos e de católicos tradicionalistas. Os primeiros atingem as camadas mais pobres da população. Usam a figura do demônio como responsável pelo desemprego, doenças, desentendimentos familiares, uso de drogas, alcoolismo. Tentam esconder com isso a realidade social que é a verdadeira causa da maioria desses problemas. Os tradicionalistas católicos, ao contrário, costumam reunir pessoas das altas classes. Ricos e famosos procuram justificar seu sucesso pela resistência às tentações do diabo e pelos serviços prestados ao “único e verdadeiro Deus” que cultuam. Os demais padecem na miséria por negarem o fanatismo deles, não por serem vitimas da desigualdade econômica. Gibson é um deles. Os filmes que estrelou têm, na maioria, os elementos de culpa, masoquismo e sangue de que procurou encharcar sua Paixão. Desde Mad Max, Máquina Mortífera, Coração Valente até Éramos Heróis, os personagens do ator e diretor australiano passam por verdadeiros calvários. Ajudam a justificar as injustiças do capitalismo. Mostram ao homem comum que miséria e sofrimento são etapas necessárias para alcançar a felicidade. 

Tanto a demonização de povos, como a encarnação do mal estão longe do que melhor produzem os esforços teológicos atuais. Aqueles que reúnem confessos de fés distintas
no acordo de que a solidariedade tem que ser o objetivo das religiões verdadeiramente humanas. Muitos católicos, evangélicos, judeus, umbandistas, budistas, xintoístas e tantos outros sabem o quanto são falhas muitas das trajetórias de suas lideranças. Mas encontram pontos de contato na intervenção comum e generosa na vida social e política.

Os socialistas e a confusão do “ópio do povo”
São esses esforços que permitem a luta pelo socialismo entre as mais diversas confissões religiosas. Também são eles que obrigam aos socialistas respeitarem e se juntarem aos religiosos na luta pela emancipação humana. Muita confusão tem sido feita em torno da famosa frase de Karl Marx, escrita em seu livro Uma Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. A frase diz que a “religião é o ópio do povo”. Mas esse trecho é a conclusão do seguinte raciocínio: “O sofrimento religioso é, a um único e mesmo tempo, a expressão do sofrimento real e um protesto contra o sofrimento real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e a alma de condições desalmadas.” Se o sentimento religioso é uma manifestação do sofrimento real, pode ser também um protesto contra ele. Somente é ópio porque serve como analgésico, tal como o ópio era utilizado no século 19. Mas pode trazer dentro de si o coração da revolta e da esperança.

O Movimento dos Sem Terra é um dos movimentos mais respeitados em sua luta no país. Acabou de completar vinte anos. Tem na Teologia da Libertação um de seus componentes ideológicos mais fortes. O mesmo vale para o movimento sindical e popular que deu origem à CUT, ao PT e a outras organizações de esquerda.

O demônio, o pecado, o desafio a Deus têm para esses companheiros, não a face do irmão e da irmã. Mas a cara da sociedade construída sobre valores que diminuem a beleza da raça humana. Comungamos da mesma idéia. Que Mel Gibson vá curtir suas culpas no inferno! Junto com Bush, Blair, Sharon, Saddam e o diabo…
 

Sérgio Domingues – Março de 2004