[Por Telma Gil/ Boletim NPC] Ruy Braga é professor de Sociologia da Universidade de São Paulo e membro do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania – Cenedic/USP. Em seus estudos, entre outras questões, analisa as condições de vida e as lutas sociais de trabalhadores brasileiros e de outros lugares do mundo, no atual momento do capitalismo. Alguns dos livros assinados por ele são: “Para além do pós(-)colonial” (co-organizado com Michel Cahen); “A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global”; “A pulsão plebeia: trabalho, precariedade e rebeliões sociais”; e “A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista”. Nesta entrevista ao Boletim NPC, ele fala sobre sociologia, política do governo federal, e novas configurações da classe trabalhadora e de suas lutas. | Leia a entrevista completa!
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- Primeiro vou me referir ao anúncio do Ministro da Educação e do Presidente da República, em abril deste ano, sobre “descentralizar”, ou melhor, acabar com investimento nas áreas de filosofia e sociologia. Como você avalia essa medida?
Eles têm a universidade como um dos seus alvos privilegiados. É um governo que busca impor ao país um projeto de claro conteúdo autoritário, e a universidade pública tradicionalmente constituiu-se na história brasileira como espaço democrático de debate, de muitas ideias não convenientes para os governos. A universidade pública hoje no país é um projeto bem-sucedido do ponto de vista das comparações internacionais, principalmente devido a sua relevância e importância para o país. Sendo a universidade pública um dos alvos privilegiados do atual governo, é natural que as ciências humanas sejam, no interior das próprias universidades, as mais visadas. Porque é exatamente essa área que alimenta um tipo de conhecimento crítico sobre a história e a sociedade que não é conveniente a um governo caracterizado por uma matriz autoritária. Um governo que busca, entre outras coisas, reescrever a história brasileira e até tem pretensões de reescrever a história mundial. Por exemplo, dizendo que a escravidão não foi de responsabilidade dos portugueses, que estes nunca teriam pisado na África, e outras idiotices como essa. O fato é que é natural e compreensível que um governo obscurantista, com uma agenda anti-intelectualista e uma agenda de ódio e de violência, procure atacar, em primeiro lugar, as humanidades. A sociologia e a filosofia são muito atacadas, entre outras coisas, porque compõem a grade obrigatória do segundo grau, quando os estudantes se alimentam dessa consciência crítica da história.
- O apelo utilizado por Jair Bolsonaro para justificar a decisão de não investir nas ciências humanas não revela uma opção pelo senso comum no entendimento da reprodução da vida?
Sem dúvida. É evidente que o governo joga uma carta que é, de alguma maneira, comprada por uma parte de seu público. O bolsonarismo tem uma base social de setores de classe média, mas tem uma base popular, que é minoritária. Calcula-se alguma coisa em torno de 15 a 20% do eleitorado que ainda é muito alinhado ao presidente, e muitos desses eleitores são de famílias trabalhadoras, são de setores populares. É um setor conservador que sempre existiu no país, e que agora assumiu uma dimensão majoritária e se expressa através desse projeto autoritário. E esse setor conservador é anti-intelectualista. Ele vê com muitas restrições um tipo de conhecimento validado cientificamente, que tem uma certa complexidade. Primero porque não domina esse conhecimento, porque é um público, em grande medida, iletrado. Ou, por outro lado, porque tem um bloqueio ideológico dado, em particular, pelo avanço do neopentecostalismo.
- Numa abordagem sociológica, o que pode ser produzido teoricamente a partir das lutas sociais?
Eu considero que uma parte importante da sociologia, do conhecimento sociológico, se organiza em torno daquilo que a gente pode chamar da “centralidade axiológica dos subalternos”, do conhecimento dos subalternos. É um tipo de relação entre a ciência e a sociedade que coloca em primeiro plano as formas de conhecimento que são populares. Lembrando a tradição marxista e gramsciana que procura valorizar exatamente essa dimensão da existência social, que se apoia sobre a experiência e a elaboração da experiência das classes sociais subalternas. A sociologia crítica sempre tem essa preocupação de colocar o conhecimento dos subalternos em primeiro plano. É natural que esse conhecimento seja fragmentado, mas mesmo nessa fragmentação existe um conhecimento racional, que é chamado de bom senso. E esse bom senso é a base propriamente da sociologia crítica. A sociologia se nutre desse tipo de conhecimento. Busca, até certo ponto, racionalizar e elaborar esse conhecimento, produzindo algo que possa ser considerado objetivo, do ponto de vista crítico, e útil para transformação social. A sociologia crítica, que se alimenta desse tipo de conhecimento, dialoga com os públicos extra acadêmicos.
- Poderia comentar sobre a concepção de “precariado”, e suas características, a partir de seus estudos? Poderíamos dizer que se trata de uma “atualização” das formas da exploração do trabalho?
Costumo dizer que o “precariado” é uma fração da classe trabalhadora que está todo tempo oscilando entre o aumento da exploração econômica – em especial da mercantilização trabalho – hoje em dia, em grande medida, associado a ataques aos direitos trabalhistas e sociais; e por outro, a ameaça da exclusão social, seja de ser deixado de fora do mercado de trabalho ou dos benefícios sociais. Você tem aí um setor da classe que está sempre ameaçada pela exclusão e pelo aumento da exploração. Normalmente a gente associa esse grupo àqueles setores mais explorados, mais mal remunerados, com menos direitos. Há pouco tempo, o grupo que se encaixava melhor nessa discussão era o trabalhador terceirizado. Mas hoje em dia você tem aí uma multiplicidade (que sempre houve) de setores informais que efetivamente representam bastante bem. O trabalhador informal é parte desse setor precarizado, que eu chamo de “proletariado precarizado”. Ele é parte desse segmento.
Do ponto de vista teórico, o precariado é formado por três grupos: aqueles trabalhadores que, por não possuírem qualificações, entram e saem rapidamente do mercado de trabalho; aquele setor que espera entrar no mercado – ou que está se qualificando ou que se origina de pequenos proprietários rurais, que foram sendo espoliados pela mercantilização das terras -; e aqueles grupos que se reproduzem em condições subnormais – que ganham muito pouco, estão sempre na informalidade, ganham abaixo do salário mínimo.
Cada vez mais os jovens são a principal face desse precariado urbano. No caso brasileiro, jovens, jovens mulheres, negras e mestiços são a face desse precariado. Muitos jovens que têm origem nos setores médios tradicionais e que não conseguem (pelo aumento do desemprego, pelo endurecimento das condições de contratação no mercado formal de trabalho) reproduzir a trajetória da condição sócio ocupacional dos pais, acabam decaindo para essa condição precária.
- Nesse sentido, há alterações na manifestação da luta social, se tivermos como perspectiva o modelo fordista de trabalho?
Existe uma mudança clara. Houve, durante o pós-segunda guerra no mundo todo, mas no Brasil em particular, a consolidação daquilo que foi chamado de “fordismo”. No nosso caso foi periférico, com um crescimento exponencial da classe operária industrial fordista, que impunha certas características à mobilização social, em especial para a luta sindical. Eram trabalhadores concentrados em espaços geralmente ligados ao setor privado e ao público também. Havia um tipo de luta popular muito orientada pelos sindicatos, pelo sindicalismo. Há, atualmente, o enfraquecimento da classe operária de estilo tradicional industrial-fabril, considerada um núcleo mais estável e consistente da classe trabalhadora brasileira. Então, o que se tem é um deslocamento daquelas formas de organização. Antes mais associada aos sindicatos, em especial aos sindicatos operários, industriais, hoje a mobilização se dá no território. Tem mais a ver com movimentos sociais urbanos, que se organizam de uma maneira muito mais horizontal do que os sindicatos, que são verticais. A agenda está mais focada na questão da cidade, do transporte, da moradia, do que propriamente do salário e das condições de trabalho. Esse tipo de contestação tende a assumir uma forma politicamente mais consistente quando interpela o Estado, esferas de governo ou o Estado nacional. Então está mais desligado da questão do poder privado, da negociação entre sindicatos e empresas, e mais associado a mobilizações de políticas públicas. É este o momento que a gente vive no Brasil.
- Em seu livro “A rebeldia do precariado”, você sinaliza o potencial para uma nova organização dos trabalhadores. A esperança de melhores condições de vida e trabalho está presente nas suas análises?
Com certeza. Na verdade, a própria mudança dessa forma de mobilização, que assume uma dimensão mais orgânica quando interpela governos, exige uma forma de organização política de novo tipo. É claro que não vai haver uma mudança absolutamente radical em relação ao passado, das formas tradicionais dos trabalhadores e dos sindicatos se organizarem. Mas sem dúvida essas formas têm que ser superadas para que uma dinâmica mais produtiva possa se estabelecer.
Em primeiro lugar, a horizontalidade. Os movimentos sociais, os partidos e os sindicatos precisam se radicalizar do ponto de vista da democracia interna. Não há mais possibilidade de se imaginar partidos políticos tradicionais, exercendo algum tipo de fascínio sobre a juventude. Segundo lugar, tem que, naturalmente, ajustar a agenda. É preciso construir um projeto, um programa que trate daquilo que é essencial hoje. E essencial hoje significa articular todas as formas de luta que se opõem à mercantilização do trabalho, da terra e do dinheiro. Trata-se, entre outras coisas, de abrir a política de esquerda para as questões de gênero, de raça, indígenas, socioambientais.
Do ponto de vista organizativo, tem que refundar a esquerda, democratizando-a. Do ponto de vista da agenda, tem que apostar na “tradução interpolítica”, segundo Boaventura Santos. Isso significa identificar aquilo que é comum nas lutas dos trabalhadores, dos sindicalistas, dos indígenas tradicionais, dos quilombolas, das mulheres e dos negros. Perceber o que existe de comum nessas lutas e desenvolver um programa político a partir daí. Na minha opinião, o ponto em comum consiste em extinguir as formas de alienação do mercado, que gravitam em torno da mercantilização do trabalho, da terra e do dinheiro. A gente está vivendo um momento muito rico. Não se pode perder de vista isso.