[Por Tatiana Lima] “Cancelar” o Cacique (o equivalente a “boicotar” quem é considerado ofensivo, de alguma forma, na internet) é cancelar uma parte da história do samba, da história de um povo preto suburbano, a história de um Rio renegado e só lembrado no carnaval. Debaixo da Tamarineira fui criada. Tive contato com bambas do samba bem pequetita. Zeca me dava jujuba e paçoca. E para mim, nada disso era grande porque Zeca era só Zeca, o tio do bolso cheio de jujuba. Só as pessoas, fisicamente falando eram grandes porque eu era pequenina, criança. Aos meus olhos, ninguém era grande demais ou importante demais. Era só samba. Suburbanos. Samba feito de gente pobre vindo de morros, asfaltos pobres e rodas.
Cacique de Ramos é um dos blocos do carnaval carioca mais tradicionais, mas também o local onde até hoje se pode entrar sem pagar NADA. NADA! Isso em um Rio de Janeiro Sulreal que cada vez mais expulsa a gente de casa: da nossa cidade. Não cobrar entrada para a roda de samba de domingo é uma premissa seguida como oração. O ambiente nunca está cheio demais a ponto de não se conseguir brincar e sambar. É regra! Depois de um certo limite, ninguém entra, ou até entra, se outro sair.
É no Cacique que eu vou há quatro décadas pra lá e pra cá. Sua quadra é uma extensão de mim, da minha casa e a Tamarineira é um ponto de ligação entre Ramos e Morro da Providência, da minha memória de infância, porque lá na Providência como em Ramos eu comia tamarindo da grande Tamarineira, que tinha quase todos os galhos para a laje da casa da minha tia na Providência assim como os galhos tomam a quadra do Cacique de Ramos. Aliás, já toquei nela, a Tamarineira, patuá vivo no Cacique, para pedir, agradecer e contar coisas, por exemplo, quando me formei como jornalista e nos seus pés chorei. Quem já foi nos meus aniversários sabe da minha ligação com o Cacique.
No Cacique, o sagrado sacraliza o profano e o profano profana o sagrado o ano inteiro na roda de samba, que começa no horário da missa de domingo, às 18h, enquanto podemos ouvir de longe os sinos da Igreja São Geraldo convocando os católicos para a missa. Se vai à missa de um lado e, às 19h, cruza-se a passagem subterrânea para ir à “missa” do outro: rodar a roda dos tambores no Cacique. Olha, de boa, somos seres paridos no entre, somos encruzilhadas. Não dá para pegar as lentes do contemporâneo e jogar para ler uma cultura parida no entre, portanto complexa, fazendo sobreposições simples como em um jogo de encaixe de peças. Cultura não é pote de plástico para se pegar uma tampa de um certo tamanho e fechar. Pronto. Definir.
É óbvio que, quando o Cacique se tornou o cacique vestindo-se de peles e panos étnicos (a fantasia deles não é de índio brasileiro, é o índio apache dos filmes de Tom Mix, protagonista de faroeste americano nos anos 1920), não existia qualquer debate quanto à representação simbólica deste ato. Mas, as pessoas – se querem fazer um.debate honesto – devem entender que a figura do cacique, a de índios, não foi escolhida por um povo de terreiro da umbanda e do candomblé à toa.
A ferramenta da ordem do pensamento, inclusive o crítico – habitualmente polarizado, dicotômico e branco -, não serve em absolutamente nada para ler o Cacique de Ramos, da estação de trem de Olaria. Percebeu? Só aí já tem entre, saca? Já tem encruzilhada, complexidade, desordem da ordem burguesa de se pensar. Já tem subúrbio, mediação, negociação.
Já tem umbanda, candomblé, já tem Antártica, Brahma, roda, espetinho de churrasco, cigarro, samba. Já tem feijoada, show de Beth Carvalho em cadeira de roda em plena quarta-feira a R$10, começando 20h para acabar 22h, porque o povo do subúrbio tem que trabalhar. Já tem índio sim no plano espiritual e físico com sua ancestralidade viva no corpo de quem levanta o copo de cerveja e tem também a de pretos nessa dobra, encruzilhando e tocando samba, dançando samba, ouvindo samba em um lugar de pobres suburbanos. Tem cultura popular na veia sacralizada em curso.
Então, o Cacique de Ramos não pode ser criticado? Pode! Claro que pode. Mas, não pode sofrer silenciamento, apagamento na sua própria cultura por lentes contemporâneas feita com boas intencionalidades, mas presas a uma forma de enxergar o mundo na lógica do passado, e sem avaliação de momento histórico de seu surgimento. Vai ver em que ano o Cacique surgiu na Wikipedia, vai?
Cacique é Cultura Popular Carnavalesca com letras maiúsculas. É cultura muito mais complexa do que esse lugar de posições de ouvidos fechados e bocas abertas. Cancelar o Cacique é cancelar em certa medida o que se quer exaltar.
Entenda a polêmica
Na contramão da irreverência dos blocos de rua e na carona da polêmica envolvendo a atriz Alessandra Negrini, internautas pediram o “cancelamento” do tradicional bloco de carnaval Cacique de Ramos, nas redes sociais. Rainha do bloco Acadêmicos do Baixo Augusta, que saiu no domingo em São Paulo, a atriz virou alvo nas redes acusada de apropriação cultural por ter usado um cocar e pintado o corpo com urucum e jenipapo para desfilar ao lado de indígenas como a ativista Sônia Guajajara.
A polêmica chegou a tal ponto que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) emitiu nota sobre o caso: “causa-nos indignação que uma aliada seja atacada por se juntar a nós em um protesto. Alessandra Negrini colocou seu corpo e sua voz a serviço de uma das causas mais urgentes”, diz a nota.
E completa: “É preciso que façamos a discussão sobre apropriação cultural com responsabilidade, diferenciando quem quer se apropriar de fato das nossas culturas, ou ridicularizá-las, daqueles que colocam seu legado artístico e político à disposição da luta”.
Diante da polêmica do debate e o “cancelamento” nas redes sociais – que começou com o comentário de um internauta – o Cacique de Ramos também lançou uma nota. “Compreendemos e respeitamos o debate identitário. No entanto, pedimos licença para falar da nossa trajetória, cujo início se deu em 20 de janeiro de 1961. Desde então o Cacique de Ramos se mantém firme no propósito inegociável da defesa do amor à cultura, ao respeito, à inclusão social, ao samba”, diz a nota.
O Cacique de Ramos desfila nos dias 23, 24 e 25 de fevereiro, no Centro do Rio. O enredo de 2020 “BETH – Eterna Madrinha” é uma homenagem à cantora e compositora, que morreu em abril de 2019.