Os Gamella são donos de 14 mil hectares de terra na região chamada de Baixada Maranhense. Na década de 1970, essa terra foi registrada em nome de particulares. Há sete anos, os indígenas lutam para recuperá-la, e nela viverem sua ancestralidade e identidade.
[Por Claudia Santiago Giannotti*] Hoje é dia 30 de abril de 2020. Há exatamente três anos, o povo indígena Akroá Gamela foi atacado por um bando armado, no povoado de Bahias, na cidade de Viana, distante 214 quilômetros de São Luís (MA), incitado por políticos e lideranças religiosas.
O fato aconteceu depois da retomada de uma porção dos 14 mil hectares de terra que lhes pertencem próximo à aldeia Taquaritiua, e que ao longo do tempo foi dominada por particulares. Existe até um ofício de 1784 da coroa portuguesa certificando que os Gamela são os legítimos proprietários das terras da região que abrange os municípios de Viana, Matinha e Penalva. O
documento pode ser encontrado no Arquivo Histórico Ultramarino.
No dia do episódio, ao perceberem a possibilidade de um massacre, indígenas recuaram decidiram sair da área. Não adiantou. Foram perseguidos, atacados por fazendeiros e jagunços com tiros e facões: 22 indígenas ficaram feridos, sendo cinco em estado grave.
Jagunços e fazendeiros recuaram quando ‘retalharam índio como se retalha porcos’, deixando- os mortos. Quando viram um dos indígenas sendo socorrido, disseram: “não tocamos fogo nele porque pensamos que ele tinha morrido”. Eles nos mataram, afirmou uma liderança indígena,
que acrescentou: “se estamos vivos foi por nossos Encantados, mas que eles mataram, mataram”. O caso chegou ao noticiário nacional e foi denunciado à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Apesar de tanta violência e de tanta luta, o reconhecimento do direito dos Akroá Gamella à terra ainda não veio. As 400 famílias, que reúnem cerca de 1500 pessoas, vivem hoje em uma área de 500 hectares, ou seja, menos de 5% do total da área que reivindicam. Embora com menor velocidade, devido à resistência do povo, empresas ainda desmatam a área e destroem as margens do rio na retirada de barro para a fabricação de tijolos e telhas; e fazendeiros desmatam para bois ou os criam nos campos naturais.
O que mudou de lá para cá?
De acordo com Kum’Tum, liderança indígena, “fortaleceu muito a solidariedade interna, o sentimento de pertença ficou ainda mais forte nas nossas relações de parentesco e com o território. Se não fosse esse fortalecimento, teríamos sofrido mais. Nossa luta é anterior ao Estado brasileiro”. Para ele, as manifestações de solidariedade, recebidas de muitas pessoas e organizações de dentro e fora do Brasil, fizeram com que travassem lutas muito importantes.
Em novembro de 2017, alguns meses depois de terem sofrido o ataque, os Akroá Gamella ocuparam o prédio da Funai, em São Luís, reivindicando a constituição de um GT (Grupo de Trabalho) para iniciar os estudos com a finalidade de identificação e delimitação do território.
Após dez dias de ocupação, foi publicada a portaria Nº 1.171, constituindo o Grupo Técnico com o objetivo de realizar estudos de natureza etno-histórica, antropológica, ambiental e cartográfica necessários à identificação e delimitação da área reivindicada pelo povo Gamela,
compreendida pelas comunidades Taquaritiua e outras, localizadas nos municípios de Viana, Penalva e Matinha, no Estado do Maranhão.
Kum’Tum lembra que o Incra entrou com uma ação pedindo a desocupação do prédio e o juiz concedeu. “Resistimos ao despejo e de novo a nossa força espiritual e a solidariedade externa foram fundamentais”.
Uma das principais lutas do povo é garantir o direito de assistência à saúde. “A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não constituiu, apesar de decisão judicial favorável, a equipe multidisciplinar de saúde no território porque alega que a terra ainda não está demarcada. Depois de muita luta estamos conseguindo atendimento na CASAI. Tudo é com
muita luta”, diz.
Em setembro de 2017, os indígenas obtiveram importante vitória judicial.
“Por intermédio da DPE, no âmbito do Mandado de Segurança Coletivo n° 2021/2017, perante à 1ª Vara da Comarca de Viana, foi determinado ao Cartório do 2º Ofício a lavratura do registro de nascimento das crianças recém-nascidas indígenas auto reconhecidas como da etnia Gamella
que ainda estão sem registro de nascimento, fazendo constar no assento o sobrenome “GAMELLA” à declaração do registrando como indígena e a indicação da respectiva etnia, sem a necessidade de apresentação do Registro Administrativo de Nascimento Indígena RANI, até julgamento final da presente ação”, explica.
Um ano depois, o GT foi ao território começar os estudos. Mas já era tarde. As mudanças na direção da Funai e do país com a eleição do presidente Jair Bolsonaro, paralisaram tudo. A política indigenista mudou.
“O território dentro de nós”
Entre os Gamela, são frequentes as histórias do tempo em os meninos iam juntar bacuri, coco babaçu, pequi ou pescar escondidos por medo dos grileiros que invadiram a terra dos indígenas. “Mesmo com pouca terra retomada já dá uma sensação de liberdade. Agora estamos experimentando a liberdade. Os garotos com 20 anos lembram do tempo que iam pegar bacuri escondido, com risco de sair descarreirado. Ter acesso ao rio Grande, pescar, pegar bacuri e babaçu sem medo é fantástico”, declama o indígena.
O retrocesso político e a perda de ferramentas que foram conquistadas são vistos com racionalidade, mas sem pessimismo. “Não estamos esperando que o Estado faça. Antes disso, estamos sentindo o território dentro de nós, construindo um lugar bom para a gente viver. Quando a Sesai diz que não pode nos atender com uma equipe multidisciplinar, ela violenta nossos corpos, mas não nos paralisa”, garante Kum’Tum Gamella.
E finaliza: “Estamos nos reconectando com lugares sagrados. Não queremos só produzir alimentos para geração de renda. A retomada dá sentido à nossa existência, pois temos uma relação espiritual com a terra, com o sagrado. O rio não é importante porque tem peixe, mas porque ele é a morada dos encantados. Quando estamos bem com ele, ele nos dá peixe. Temos uma relação familiar com a natureza”.
Roubo de terra na década de 1970 e luta pela retomada
Ao longo da história, os Gamela sofreram muitos golpes. O maior deles, no que toca à questão da terra, se deu em plena ditadura militar, no duríssimo ano de chumbo de 1969. Naquela ocasião, o cartório de Viana fez uma fraude na escritura do território. Depois disso, a terra ancestral de uso comum, foi sendo loteada, cercada e colocada em nomes de particulares. Hoje não há sequer um pedaço de terra em nome do povo.
Documento da Fiocruz afirma que “a forte atuação de grileiros conhecidos na região, pistoleiros e policiais configurou, na memória dos mais velhos, um cenário de guerra e terror, sendo uma das estratégias de sobrevivência por parte dos indígenas o recuo para áreas mais distantes dentro do seu território tradicional, em relação àquelas ocupadas por grileiros e fazendeiros, para que não fossem completamente extintos”.
A luta dos Gamela ganhou fôlego a partir de 2013, quando o povo tomou duas decisões:
- Lutar pela sua existência como Povo Indígena Akroá Gamella.
- Fazer a autodemarcação de seu território. A Funai já vinha sendo pressionada para demarcar oficialmente desde o final da década de 1970.
Desde então, esses dois objetivos vêm sendo perseguidos. A luta se organiza a partir da aldeia mãe, que fica em Taquaritiua, onde estão também os mais velhos, os que guardam a memória do povo.
Em agosto de 2014, os Gamella realizaram a I Assembleia. Tendo como base a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, se autodeclararam povo Gamela. A ata dessa Assembleia foi protocolada na FUNAI.
“Os conflitos em torno da expropriação permaneceram e, no mês de outubro de 2014, o povo Gamella denunciou um processo de desmatamento em parte do território na Delegacia de Viana. Como não houve retorno por parte dos poderes públicos locais, a cerca foi retirada e a área foi
retomada pelos Gamela, que decidiram em Assembleia pela produção de uma plantação para usufruto coletivo”. (“Povo Gamela, da comunidade de Taquaritiua, resiste para manter o seu território livre”, reportagem disponibilizada pelo Cimi Regional Maranhão em outubro de 2014).
Em 2015, foi realizada a II Assembleia do Povo Gamela, com o tema “Revitalizando a cultura e tecendo nosso futuro”. Houve a participação de outros povos indígenas, dentre estes os Krenyê e os Ka’apor. Logo em seguida, foram retomadas duas fazendas que estavam em terra Gamela.
No total, os Gamela já recuperaram oito áreas tradicionais. No dia do massacre se preparavam para recuperar a nona.
Extinto, eu?
Os Gamela foram considerados um povo extinto sob o argumento de que haviam se misturado com os brancos e, principalmente, com os pretos. Assim passaram a ser chamados de “descendentes de índios”.
Ora, se não há indígenas, não há aldeias e, consequentemente, a terra é considerada sem dono. Por trás do apagamento da existência indígena, como vemos, está a cobiça pela terra. Terras que foram incorporadas ao poder público e tomadas por pequenos agricultores e grandes fazendeiros.
Considerar um povo extinto é torná-lo invisível. Mas os Gamela continuam vivos e lutam para recuperar sua terra e ter sua identidade reconhecida. Brigam pelo direito de manter suas formas originais de vida, o contato com sua ancestralidade, e dizem: essa terra tem dono!
Sua luta é também fruto da mobilização indígena no país, que conseguiu, através da Constituição Federal de 1988, o reconhecimento das diversidades étnicas no Brasil e a construção de políticas públicas específicas e diferenciadas.
O que querem os Akroá Gamella?
. Que o governo brasileiro respeite e faça cumprir o direito territorial dos povos indígenas que está garantido no artigo 231 da Constituição Federal de 1988.
. Demarcação e homologação do território tradicional do povo Akroá Gamella.
. Respeito e garantia ao direito à reprodução do seu modo de vida.
. Efetivação do direito à saúde e educação diferenciadas.
[Claudia é jornalista e historiadora]