Conselho Nacional de Educação e MEC ignoram legislação e deixam um sem número de estudantes sujeitos a própria sorte

Por Amanda Soares, sob a supervisão de Claudia Santiago

A suspensão das aulas foi uma das ações mais recomendadas pela Organização Mundial da Saúde para conter a contaminação comunitária pelo Covid 19, devido ao alto potencial de transmissão. O Conselho Nacional de Educação (CNE) e o Ministério da Educação (MEC) produziram, então, um parecer para manter o ano letivo, ignorando limitações estruturais.

O documento publicado em 28 de março regulariza a oferta de atividades não presenciais da educação infantil até o ensino superior, inclusive de atividades obrigatórias, podendo gerar uma grande injustiça social. 

O texto sugere, por exemplo, que as escolas adaptem o conteúdo em videoaulas, plataformas virtuais de ensino, e redes sociais, entre outros. A solução milagrosa com pouco planejamento pode gerar uma grande injustiça social. Mais de 45 milhões de brasileiros ainda não têm acesso à internet (IBGE, 2018).

Segundo o estudo, das que possuem acesso, 48,1% não tem computador. Há ainda problemas de acessibilidade, que demandam adaptação do ensino para garantir o direito à educação de estudantes especiais.

Medida sobrecarrega responsáveis

Quézia Lopes mora em Niterói (RJ) é mãe de Nicholas, de oito anos, que está no 2o ano do ensino fundamental. Ele é autista e estuda em uma escola particular que adotou a plataforma “Google Meet” para as aulas, e um aplicativo de mensagens para manter a interação entre os colegas. Segundo Quézia, após dois meses neste sistema, parte da turma parece não ter conseguido se adaptar: “nem todos da turma tão conseguindo acompanhar as aulas (…). Sei porque a turma tem 22 alunos, e não tem esse número todo participando do grupo, interagindo”.

Quézia e Nicholas (8). A pequena mesa da cozinha agora também é o escritório da produtora e sala de aula improvisada.

O CNE recomenda que as escolas desenvolvam atividades para que os pais apliquem o conteúdo de ensino fundamental, inclusive na tarefa complexa da alfabetização. Sobra para os responsáveis, que agora além de trabalharem em casa, têm a responsabilidade de correr atrás de meios de fazer funcionar.

A boa vontade, entretanto, esbarra na falta de formação e estrutura. A mesa da cozinha da família de Quézia se transformou em ilha de trabalho dela e do marido, e sala de aula improvisada. A adaptação tem sido um desafio para toda a comunidade escolar: “É bem puxado. Eu tive que reclamar com a coordenadora por que estava querendo encher de conteúdo pra gente dar em casa, argumentando que eles tão acostumados com esse ritmo na escola, mas é preciso adaptar porque pai e mãe não é professor”, desabafa. 

O autismo possui diferentes níveis, que refletem na forma como a pessoa vai se relacionar com o ambiente, as pessoas e até com ela mesma. É ainda mais difícil pro Nicholas, por exemplo, manter a atenção no conteúdo virtual. Segundo a mãe, “Ele fica procurando quanto tempo falta pra acabar o vídeo”. A mudança do ambiente real para o virtual prejudica a absorção do conteúdo. “Em áudio, como ele não vê a pessoa, só escuta a voz, ele não consegue absorver. Não consegue dialogar com essa pessoa que não existe, é só a voz, então ele logo se distrai”.

Também é mais fácil perder a atenção. A caneta, a borracha, o som dos pés no chão são mais próximos da realidade do que o professor virtual, com o qual ele não consegue se relacionar. “Na escola, quando a professora dá o conteúdo, alguém precisa dizer a ele o que fazer, ou repassar de forma individualmente, se não ele não retém o que a professora está explicando para o coletivo. Virtualmente, nós temos que converter o conteúdo todo, novamente, através da nossa boca, pra fazer com que ele compreenda”, explica a mãe.

A tarefa se torna desgastante. Para o aluno e para os pais. “Nós estamos exaustos. E isso desgasta a nossa relação, e a [relação] dele com a escola”. Quézia percebe a diferença no rendimento do filho: “a professora acaba de explicar o conteúdo no vídeo. A gente vai perguntar sobre, e ele não entendeu. Tem que repetir muitas vezes pra que ele entenda”.

Bola de neve

 É difícil saber quantos são os brasileiros autistas. Não há números oficiais. Mas mesmo sem saber quantos são, desde 2012 a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, implementada pela lei 12.764 garante a eles direitos como acesso à educação formal e a presença de um professor assistente em sala de aula. 

O parecer do CNE diz que as atividades adaptadas devem incluir os estudantes com deficiência, transtorno de espectro autista, como o filho de Quézia, e superdotação, e exige que se adotem medidas de acessibilidade que respeitem a regulação já existente de estados e municípios.

O documento recomenda, ainda, que alunos especiais recebam acompanhamento especializado, mas não sugere um método para a aplicação de nenhuma dessas regras durante o isolamento social. Por enquanto, pais e responsáveis se sobrecarregam.

A diretriz recomenda, ainda, que os alunos passem por uma avaliação baseada no conteúdo da Base Comum Curricular, quando a situação se normalizar. Quézia teme que os alunos sejam penalizados no final de tudo isso: “Eles [a escola] dizem que vão compensar tudo, mas nem todas as crianças vão conseguir acompanhar, cada um tem um tempo”.

Amanda é parte da rede de comunicadores do Núcleo Piratininga.